sábado, 28 de junho de 2014

Ecologia profunda

Grande parte das filosofias ocidentais tem ignorado o mundo natural, atendo-se mais ao nível do espírito. Nas últimas décadas, porém, vem emergindo uma filosofia centrada na valorização do meio ambiente, chamada ecofilosofia. Nesse contexto, surgiu, em 1973, a chamada ecologia profunda, proposta pelo filósofo norueguês Arne Naess (nascido em 1912), que prefere falar em ecosofia, que seria sabedoria ligada ao meio ambiente. Já na década de oitenta, foram formulados os fundamentos dessa vertente da ecofilosofia. Trata-se dos oito Princípios da Plataforma do Movimento da Ecologia Profunda, reproduzidos a seguir.
1. O bem-estar e o florescimento da vida humana e da não humana sobre a terra têm valor em si próprios (sinônimos: valor intrínseco, valor inerente). Esses valores são independentes da utilidade do mundo não humano para propósitos humanos.
2. A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem para a realização desses valores e são valores em si mesmas.
3. Os humanos não têm nenhum direito de reduzir essa riqueza e diversidade exceto para satisfazer necessidades humanas vitais.
4. O florescimento da vida humana e das culturas é compatível com uma substancial diminuição na população humana. O florescimento da vida não humana exige essa diminuição.
5. A interferência humana atual no mundo não humano é excessiva, e a situação está piorando rapidamente.
6. As políticas precisam ser mudadas. Essas políticas afetam estruturas econômicas, tecnológicas e ideológicas básicas. O estado de coisas resultante será profundamente diferente do atual.
7. A mudança ideológica é basicamente a de apreciar a qualidade de vida (manter-se em situações de valor intrínseco), não a de adesão a um sempre crescente padrão de vida. Haverá uma profunda consciência da diferença entre grande e importante.
8. Aqueles que subscrevem os pontos precedentes têm a obrigação de tentar implementar, direta ou indiretamente, as mudanças necessárias .
Esses princípios têm por base idéias de Arne Naess, mas foram formulados com a colaboração de George Sessions (cf. Deep ecology, de Bill Devall, George Sessions. Salt Lake City: Gibbs Smith, 1985).
Nas palavras do próprio Naess, ecosofia é "uma filosofia de harmonia ou equilíbrio ecológico. Filosofia como um tipo de sofia ou sabedoria é abertamente normativa, contém normas, regras, postulados, anúncio de prioridades e hipóteses relacionados à situação do universo. Sabedoria é sabedoria política, prescrição, não apenas descrição científica e predição. Os detalhes de uma ecosofia conterão muitas variações devidas a diferenças significativas relacionadas não apenas aos 'fatos' da poluição, dos recursos naturais, da população, etc. mas também a prioridades de valores".
Os princípios de n. 1, 2 e 3 da Plataforma do Movimento da Ecologia Profunda têm a ver com a questão da biodiversidade. De acordo com eles, todos os seres vivos têm direito a ser respeitados como tais, eles têm valor em si mesmos quer os humanos pensem assim quer não. A própria biodiversidade favorece a valorização desses seres, uma vez que todos estão inseridos em ecossistemas em que cada um tem um papel a exercer, mesmo que isso não traga vantagens imediatas para os humanos. A ecologia profunda é ecocêntrica, não antropocêntrica como muitos movimentos ecológicos, como é o caso do movimento da ecologia rasa.
O movimento da ecologia rasa pode até lutar contra a poluição e a depredação dos recursos naturais. Mas, seu objetivo central é a saúde e o bem-estar dos povos dos países desenvolvidos, uma vez que põe em primeiro plano o desenvolvimento econômico, não o desenvolvimento pessoal. Portanto, contrariamente ao movimento da ecologia profunda, não vai a fundo nas questões ambientais. Ele se atém a interesses humanos de curto prazo. É formado por movimentos e ideias pretensamente ambientais que, a despeito de bem intencionados, não têm por objetivo modificar o atual estado de coisas. Por serem antropocêntricos, frequentemente, chegam a justificar a depredação da natureza em nome de um passageiro bem-estar humano. A ecologia profunda, ao contrário, questiona os próprios fundamentos de nossa civilização "ocidental", centrada na economia, não na ecologia. Mas, ela o faz sem recorrer à violência. Pelo contrário, seus partidários são explicitamente contra qualquer forma de violência. Tanto que uma das inspirações de Naess é Mahatma Gandhi.
Naess salienta que o mais importante não é o índice de desenvolvimento econômico, medido em PIB, por exemplo. Pelo contrário, desenvolvimento só se justificaria se tivesse por objetivo um índice de desenvolvimento humano, portanto, IDH, não propriamente PIB. Nesse ponto ele quase concorda com o ecoeconomista Lester Brown, que defende a tese de que os economistas deveriam trabalhar junto com os ecologistas, a fim de se averiguar o ônus do desenvolvimento econômico, como exaustão dos recursos naturais, diminuição dos mananciais de água, desmatamentos, efeito estufa e outros. 
Uma das ideias centrais da ecosofia proposta por Naess e colaboradores é ter uma visão total e compreensiva de nossa situação humana e individual. Isso significa que o indivíduo está incluído no meio ambiente. Não faz sentido fazer uma separação rígida entre eu e o mundo. O eu faz parte do mundo. Isso implica uma visão que contemple a diversidade das manifestações do mundo, embora para cada indivíduo o importante seja a autorrealização, o que significa que ele precisa levar em conta a autorrealização dos outros indivíduos. Dentro da visão de tolerância que caracteriza a ecofilosofia ou ecosofia, como Naess prefere chamá-la, crenças diversas podem ser acomodadas. Para isso, foram previstos Níveis de Questionamento e Articulação. No Nível I, das Premissas Primeiras, estão os princípios que cada um segue, suas convicções pessoais. Aí podem incluir-se os seguidores do taoísmo, do cristianismo, da ecosofia de Naess (que ele chama de Ecosofia T) assim como pode se incluir a minha ecosofia (que chamo de Ecosofia A), a sua visão de mundo e assim por diante. Esses movimentos só são aceitáveis pelos seguidores da ecologia profunda se se enquadram nos preceitos do Nível II, que é o Movimento dos Princípios da Plataforma visto acima. O nível superior, Nível III, é o das políticas seguidas. Dependendo das Premissas Primeiras que o indivíduo segue, ele poderá ter uma política A, uma política B, uma política C e assim por diante, mas sempre filtradas pelos princípios do Nível II. O último nível, o Nível IV, é o das Ações Práticas, que podem ser W, X, Y etc. É o nível em que se aplicam os princípios na intervenção sobre o mundo. Como vimos, isso se dá de forma pacífica. Pode haver muita diferença de estratégia no Nível III e de tática no nível IV, contanto que não infrinjam os Princípios do Nível II. No fim, tudo converge para a ideia central de valorização da diversidade, de respeito por todas as formas de vida e pela própria natureza mineral.
Enfim, a ecologia profunda, ou ecosofia, representa uma nova maneira de ver o mundo e de se relacionar com ele. Antes de tudo respeitar a diferença, agir de modo benevolente, evitar suntuosidade, procurar aproximar-se da natureza exterior aos nossos corpos físicos, na medida do possível. Todos os males do mundo moderno vêm de nosso distanciamento da natureza, de nossa ganância, que nos leva a sempre querer mais e nunca ter tempo para simplesmente viver. Os mais ricos não são necessariamente os mais felizes e os mais pobres não são necessariamente os mais infelizes.
[Texto publicado originalmente em Revista Meio Ambiente - Revista de Ecologia e Consumo
(22/12/2006). Ver também www.thesaurus.com.br
No meu livro O tao da linguagem: Um caminho suave para a redação (Campinas: Pontes, 2012) há um capítulo sobre 'ecologia profunda'  (p. 49-67).

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Ecolinguagem

Autores:
Francisco Gomes de Matos (UFPE)
Elza Kioko N. N. do Couto (UFG)
Adilson Marques (FESC)
Hildo Honório do Couto (UnB)

 
1. Introdução
A primeira ideia que vem à mente quando ouvimos a palavra 'ecolinguagem' é a de que ela seria a "linguagem ecologicamente correta". Essa é a opinião do leigo. Porém, ela é apenas parcialmente correta e pode levar a interpretações equivocadas, como sói acontecer. Por isso, deixemos a conceituação para a seção seguinte e passemos ao surgimento da própria palavra.
Durante a realização do I Encontro Brasileiro de Imaginário e Ecolinguística (I EBIME), na UFG, de 5 a 6 de dezembro de 2013, ela apareceu pelo menos no título de Marques (2013). Em Couto & Silva (2013) ela foi discutida em algumas seções do ensaio, como veremos mais abaixo. Na internet, não encontramos nenhuma ocorrência da palavra 'ecolinguagem' em português, sem hífen. Com hífen, porém, ela apareceu pelo menos no subcapítulo de um artigo traduzido do inglês intitulado "Eco-linguagem: fazendo a natureza significar 'meio-ambiente'". Em inglês, espanhol, francês e alemão ela ocorreu, com e sem hífen, em geral fora dos estudos linguísticos, com raríssimas exceções. Em ensaios científicos, o termo já surgiu pelo menos duas vezes, como em Ferreira (2002) e Martí Marco (2006), às quais voltaremos logo abaixo. É importante ressaltar desde já que o sentido atribuído à palavra por elas não é necessariamente o mesmo em que a usamos aqui. De qualquer forma, o termo se insere no contexto da visão ecológica de mundo, que tem dado origem a muitas eco-palavras, que veem aumentando a cada dia que passa. Pelo menos em português e em galego já ocorreu também a variante 'ecolíngua'.
2. Conceituando Ecolinguagem
Para entender o que é ecolinguagem, é necessário associá-la à visão ecológica de mundo. Com isso, ela tem muito a ver com a ecolinguística, embora não se possa dizer que a última a tenha como objeto de estudo. Na verdade, ecolinguística é o estudo das relações entre língua e seu meio ambiente (natural, mental, social), ou das interações verbais que se dão no meio ambiente natural, no mental e no social. Vale dizer, a tentação de dizer que a o objeto de estudo da ecolinguística é a ecolinguagem é muito grande, no entanto, a ecolinguística é mais ampla, uma vez que toda e qualquer manifestação linguística está no seu âmbito de interesse. A fim de encaminhar a discussão de modo mais direcionado, comecemos pela opinião das duas autoras já mencionadas, cujos ensaios estão em alemão.
A primeira delas é a ucraniana Olga Malachowa. Malachowa (1996) é inteiramente dedicado à ecolinguagem, em alemão Ökosprache. Para ela, um dos objetivos da ecolinguagem é "aperfeiçoamento das relações dos humanos com o meio ambiente", acrescentando que "como resultado desse processo  surgirá um novo nóvel lexical" (p. 205). Trata-se do ecoléxico. Ela não chega a definir 'ecolinguagem'. O significado fica implícito ao longo de todo o texto. Em alemão o ecoléxico apresenta cinco tipos de expressões, ou seja, 1) inovações lexicais, 2) formação de palavras, 3) ressignificação de palavras, 4) fraseologismos, 5) estrangeirismos.
Seis anos depois, a portuguesa Adelaide Ferreira também usou a palavra. Em Ferreira (2002), ela conceitua o equivalente alemão de ecolinguagem (Ökosprache) como sendo menos concreto do que “linguagem de casa” (Haussprache). Para ela, ecolinguagem “tem a ver com naureza/meio ambiente de modo mais concreto”. Entre as palavras que inclui na ecolinguagem encontram-se: “meio ambiente”, “natureza (livre)”, “ecologia”, “reservas naturais”, “biótopo”, “oceanos”, “Amazônia”, “energia atômica”, “animais selvagens”, “plantas”, “catástrofe climática” e “tratamento do ecossistema".
A terceira é a espanhola Martí Marco (2006) que, na verdade, retoma ideias de Malachowa e Ferreira. Para ela, ecolinguagem (Ökosprache) é uma ‘linguagem de especialidade’, no caso, da ecologia e tudo que tem a ver com ela. Acrescenta que o uso quotidiano "ameaça tornar 'ecologia' uma etiqueta para tudo que é bom, como o que está longe das cidades, ou para tudo que não contenha produtos químicos sintéticos". Menciona como parte do ecoléxico expressões como natural, ambiental  etc. Algumas expressões indicam atributos positivos (verde, amigo do meio ambiente); outras, atribbutos negativos (poluição, ameaçado, esgotato).
Como já notado acima, durante o I EBIME o termo ecolinguagem ocorreu também em Couto & Silva (este volume). Diferentemente de Marques (este volume) os autores chegam a dar algumas sugestões de conceituação de ecolinguagem. Já no resumo da comunicação oral, eles dizem que "o objetivo deste artigo é discorrer sobre a ética ecológica (ecoética) e mostrar como ela poderia ser desenvolvida no contexto da Análise do Discurso Ecológica (doravante ADE), que parte da ecolinguagem e enfatiza a defesa da vida, inclusive sugerindo intervenção a fim de preservá-la". Para eles, "a ecolinguagem é expressão vista numa perspectiva holística, ou seja, a captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, sempre articuladas entre si dentro da totalidade e construindo essa totalidade", reportando-se a Leonardo Boff. Continuam asseverando que o uso do prefixo eco- faz parte da ecolinguagem. Concluem com a observação de que se "percebe que é necessária uma luta pela vida de todos os seres de todas as espécies sem violência e criticando o antropocentrismo em sua máxima e, consequentemente, contra tudo que pode trazer sofrimento" e que para isso "é necessário partir da ecolinguagem e aliar a ecoética à ADE".
Diante do que foi discutido até aqui, nota-se que ecolinguagem tem a ver com ecologia, no sentido mais amplo da palavra. Mas, em vez de ser apenas uma linguagem ecologicamente correta, é, antes, a linguagem que se mostra em sintonia com a visão ecológica de mundo. Isso implica muitas coisas. Por exemplo, praticar ecolinguagem é:
1) respeitar a diversidade, em todos os sentidos;
2) encarar tudo holisticamente, não parcialmente (com parcialidade);
3) aceitar a ideia de que o mundo é impermanente, como dizem os taoístas; ele é um processo, nada é reigidamente estático;
4) procurar ser cooperativo, solidário, magninânimo e tolerante, como manda o taoísmo;
5) mostrar tudo isso na escolha das palavras e no modo de usá-las;
6) usar uma linguagem ecologicamente correta.
Como nos ensina a ecologia profunda, criada pelo filósofo norueguês Arne Naess (1912–2009), tudo isso deve ser observado não só no que tange aos humanos mas também no que diz respeito aos demais seres vivos, e até os aspectos abióticos do mundo.
3. Ideologia ecológica
Se a ecolinguagem tem tudo a ver com ecolinguística, mesmo que o objeto da segunda não se restrinja a ela, conclui-se que ela tem também a ver com o objeto de estudo da análise do discurso ecológica, a ADE (Couto, este volume). Ela surgiu com o objetivo de substituir a ênfase dada pela análise do discurso tradicional à ideologia (política, partidária, religiosa etc.) e às consquentes relações de poder. A ideologia no caso tem sido a marxista, que tem pelo menos três implicações inaceitáveis para a visão ecológica de mundo. A primeira é o antropocentrismo (sob o manto de humanismo), sendo que a ecologia defende o biocentrismo e o ecocentrismo. A segunda é a ênfase no conflito, sendo que a ADE e tudo que está por trás dela partem da harmonia, como se faz no taoísmo e na ecologia profunda. A terceira é a "ditadura do proletariado", locução nominal cujo núcleo é "ditatura", não "proletariado". Sabemos muito bem a que distorções essa ideologia levou quando posta em prática na União Soviética, na Alemanha Oriental, na Coreia do Norte e em Cuba, para mencionar apenas quatro casos.
Como a ecolinguística, bem como da visão ecológica de mundo em que se insere, a ADE parte da ideologia ecológica, ou ideologia da vida. Para ela, o mais importante no caso de uma mulher que sofre nas mãos de um marido violento que chega bêbado em casa e a espanca todos os dias não é encarar o fato da perspectiva do feminismo e do machismo. Feminismo e machismo são ideologias, e ideologias são partidárias, dividem. A ADE defende a mulher não por ser mulher, com o que a estaria pondo em oposição ao homem, mas por ser um ser vivo que sofre. Assim, ela é posta em condição de igualdade com o homem, e seu sofrimento deve ser combatido pelo simples fato de se tratar de sofrimento de um ser vivo. Esse é o ponto central da ADE, a defesa intransigente da vida e uma luta constante contra tudo que possa trazer sofrimento a um ser vivo. Dessa perspectiva, quem a pratica está naturalmente usando ecolinguagem.     
4. Alguns dos primeiros estudiosos de temas relativos à ecolinguagem
Alguns autores já trataram de temas que se incluiriam no bojo da ecolinguagem. O primeiro que gostaríamos de mencionar é Bohm (2007). Embora seja um físico, ele se preocupou muito com a questão da linguagem que usamos para falar do mundo, que o reificaria, que veria nele coisas, representadas na linguagem por substantivos. Para ele, "numa teoria relativística, é necessário abandonar por completo a noção de que o mundo é constituído de objetos ou 'blocos de ocnstrução' fundamentais", que seriam designados por substantivos (p. 30). Assim, "uma característica muito importante desse tipo é a estrutura sujeito-verbo-objeto das sentenças" que "tende a dividir as coisas em entidades separadas" (p. 53), no caso, a coisa "sujeito" e coisa "objeto", ligadas pela ação indicada pelo verbo. Segundo a nova visão de mundo, introduziada pela teoria da relatividade, "em vez de dizer: 'Um observador olha para um objeto', podemos mais adequadamente dizer: 'A observação está ocorrendo, num movimento indiviso envolvendo essas abstrações comumente chamadas de 'ser humano', e de 'objeto para o qual ele está olhando'" (p. 54).
Uma expressão como está chovendo está mais em sintonia com a nova visão de mundo do que a chuva está caindo. Bohm acrescenta que "a bem da conveniência, daremos a esse modo [de se expressar] um nome: reomodo (rheo vem de um verbo grego que significa 'fluir'). Ao menos em primeira instância, o reomodo será uma experiência no uso da linguagem, experiência essa voltada, principalmente, para a tentativa de descobrir se é possível criar uma nova estrutura que não seja tão inclinada à fragmentação como é a atual. Evidentemente, nossa indagação terá de começar enfatizando o papel da linguagem no modelamento de nossas visões globais de mundo, bem como em expressá-las mais preciosamente na forma de ideias filosóficas gerais" (p. 55). Enfim, o autor sugere que vejamos o mundo como uma imensa rede de interações, não como um conjunto de coisas que se relacionam entre si. Embora ele aparentemente não fosse um ecologista, sua proposta é inteiramente ecológica. Portanto, o que ele defendeu pode integrar a ecolinguagem.
Um segundo autor se dedicou ao assunto é o conhecido linguista Michael Halliday. Num ensaio que se tornou divisor de águas na ecolinguística (Halliday 2001), ele defende uma tese muito parecida com a de Bohm, mostrando que desde os escritos de Newton, a tendência na língua inglesa é de ver o mundo mediante nomes abstratos como termos técnicos tirados do grego via latim clássico e medieval (incidence, proportion), nomes metafóricos como nominalizações de processos e propriedades (the diverging and separation of the heterogeneous rays), grupos nominais expandidos como palavras funcionando como epítetos e classificadores (several contiguous refracting Mediums), grupos nominais expandidos com frases e sentenças funcionando como qualificadores (the Whiteness of emerging light, the refracting force of the body), verbos metafóricos como verbalização de relações lógicas (arises from, is occasioned by) e assim por diante. Fatos semelhantes são citados para o italiano, na linguagem de Galileo (Halliday 2001: 187-188). O autor acrescenta que o que esses autores fizeram foi simplesmente reforçar registros da língua que já estavam disponíveis.
De acordo com Halliday, os discursos tecnocrático, burocrático e científico são herméticos, com o que os assuntos se tornam obscuros. Uma vez que "são obscuros, não devemos ter esperança de entendê-los, de modo que a solução deve ficar com os especialistas" (p. 190). Em parte isso se deveria, segundo ele, à gramática nominalizadora e metafórica do século XX. De modo que a chamada "sociedade da informação" deveria ser chamada de "sociedade da desinformação". A proposta de Halliday afirma que "a nominalização foi funcional para a evolução da ciência experimental, possibilitando o desenvolvimento de taxonomias técnicas e desvelando as relações existentes entre os processos, mas não é adequada para representar a visão de mundo mais relativística que está emergindo da ciência moderna porque representa um mundo de coisas, não de processos. Nominalizações como perda de habitat, extinção de espécies e destruição da floresta pluvial permitem a supressão do agente, o que ocultaria a culpa de quem causa tudo isso. Enfim, essas ideias de Halliday salientam o que não é ecolinguagem, mas, antes, o seu contrário. 
Mais próximos de nós temos os trabalhos do primeiro autor do presente ensaio, F. Gomes de Matos. Como se pode ver no boletim do Instituto de Idiomas Yázigi (Criativity n. 25, 1977) de que foi diretor, ele sugeria a associação enre linguagem e seu ensino a ecologia já na década de setente do século passado, reportando-se a Catherine Young Silva. Um dos objetivos era "estabelecer um equilíbrio ecológico de modo a melhorar a qualidade de vida na terra". A partir daí, o autor começou a apresentar sua proposta de "português positivo",  dentro da filosofia de que "comunicar bem em português é comunicar-se para o bem", de acordo com uma "filosofia da positividade" (Matos 1996: 13). Partindo da visão de mundo cristã, sugeria que se tratasse o outro como o próximo, não o estranho. Entre os termos que comporiam esse 'português positivo' e que, portanto, são parte da ecolinguagem, temos: alegria, aliança, amizade, amor, caridade, concórdia, consciência, esperança, honra, humildade, justiça, liberdade, obediência, perseverança, por um lado, mas também aceitação, bondade, compreensão, confiança, cooperação, dignidade, fidelidade, generosidade, honestidade, sabedoria, santidade, sensatez, ternura, união, verdade e virtude, por outro lado.   
Essa pesquisa continua até nossos dias, como se pode ver em Matos (1996, 2006). No momento, ele tem enfatizado que uma alternativa comunicacional para palavras maximizadoras, enfatizadoras poderia ser inspirar-se na relação entre linguagem e meio ambiente e aplicar os princípios da ecolinguística. Assim, as algumas intensificações passariam a ser expressas por oceânico(a), ensolaradamente etc. No fecho de seus emails informais em português, ele tem dito Um abraço ensolarado ou ativar a variante ensolaradamente, e mandar um abraço. Quando exerce o direito linguístico de bilíngue (português e inglês), encerra uma mensagem eletrônica assim: sunny regards. Ao agradecer a um(a) amigo(a), frequentemente diz: an ocean of thanks (oceanicamente agradecido). Seria como mergulhar nas águas ecolinguísticas disponíveis para os usuários de português e criar modos de dizer inspirados por fenômenos naturais. Ao exercer a criatividade linguística, que tal integrar a dimensão ecolinguística e manifestar ideias enluaradamente, ao invés de simplesmente dizer iluminadamente? Claro que essas maneiras de se expressar constituem metáforas, mas comunicar é metaforizar, por isso, empenhemo-nos em dar mais vivacidade aos nossos papéis de metaforizadores. Um desafio ecolinguístico consistiria em traduzir uma expressão do informal usual para o informal ecolinguisticamente inusitado. Exemplo: sua sugestão está muito além das disponibilidades financeiras por sua sugestão está financeiramente montanhosa.
Em outras situações, poderíamos ter: uma noite de domingo estelarmente feliz para você, agradeço oceanicamente pelo interesse em meu apelo em prol de uma comunicação ecolinguisticamente construtiva, positiva, dignificante.  No ensino de português quando se aborda a metaforização bem se poderia ensolarar a qualidade das mensagens e plantar ideias que frutifiquem para o bem dos usuários de línguas. Às vezes Matos termina as mensagens com abraço capibaribeano, lembrando o rio de sua infância, em Recife. Ao cumprimentar um tecnólogo educacional, em vez de dizer votos de muito sucesso tecnológico, que tal dizer deliciosos frutos em suas árvores tecnológicas?". Enfim, Bohm, Halliday e Matos sugeriam, e usavam, ecolinguagem mesmo avant la lettre.
Por fim, temos o falecido ecolinguista brasileiro Manoel Soares Sarmento que sugeriu diversos tipos de expressão para uma futura ecolinguagem. Em Sarmento (2002, 2012), ele propõe uma ecolexicologia e uma ecolexicografia. De um modo geral, o autor propunha "palavras ecológicas" e "expressões ecológicas", no contexto de sua ecolexicografia. Em Sarmento (2012), ele diz que "nossa ciência tem de se ver às voltas seriamente, na realização de suas discussões e tarefas, com as palavras que usamos, a respeito dos efeitos que elas causam, quais as suas potencialidades para criar, enfraquecer, fortalecer, manter e destruir". "Alguns alvos de anvestigação da ecolinguística" seriam: "tratar a língua face aos sistemas biológicos diversos e similares"; realizar a crítica da língua, tanto em termos do par língua-meio ambiente, quanto de uma crítica ao sistema interno da língua. Assim, o trabalho envolveria os estratos comumente discutidos da língua humana: o léxico, a morfologia a sintaxe, a semântica etc.".
Por fim, cabe mencionar a conbrituição do quarto autor que tentou aplicar os princípios do taoísmo à linguagem (Couto 2012). Tudo que está dito no livro está no escopo da ecolinguagem, uma vez que a linguagem taoísta é ecolinguagem, como se verá na seção seguinte. 
5. O tao da linguagem
Aqui vamos apenas lembrar algumas passagens de Couto (2012). No capítulo "Conclusão" do livro, vemos que "o tao da linguagem consiste em:
- Valorizar mais o conteúdo do que a forma
- Falar apenas o necessário
- Ouvir mais do que falar
- Não querer dominar a palavra
- Respeitar o direito do interlocutor à palavra
- Comunicar-se harmoniosamente
- Expressar-se suavemente.
Afinal, como diz um provérbio chinês, palavras ríspidas e argumentos pobres nunca resolveram nada"  (p. 224-225).
Entre as palavras que constituiriam o "vocabulário taoísta" e, portanto, faria parte da ecolinguagem, o livro alinha:
"a. O EU em relação com o próximo:
- desculpa (resposta: "de nada")
- perdão (resp.: "está perdoado")
- com licença (resp. "pois não!")
- paz
- benevolência
- fraternidade
- tolerância
- amor
- compaixão
......................
b. O EU em relação com o mundo (que inclui a relação com o próximo)
- harmonia
- flexibilidade
- adaptabilidade / amoldabilidade
- receptividade
.......................
c. O EU em relação consigo próprio
- serenidade
- moderação
- simplicidade
- saúde
- sabedoria (não erudição)
- tranquilidade
- humildade
- suficiência
- moderação
........................."
Tudo isso está em sintonia com as ideias do primeiro autor do presente ensaio apresentadas sumariamente na seção 4.
6. A linguagem não preconceituosa
Em Couto (2007: 347-356), há toda uma gama de termos que pertencem a uma linguagem preconceituosa que não tem lugar na ecolinguagem. Entre eles temos o antropocentrismo,  o etnocentrismo (racismo), o androcentrismo (machismo, sexismo), o crescimentismo (grandismo), o aulicismo (classismo) e a linguagem "culta". O antropocentrismo nos leva a achar que somos "os reis da criação" e que todos os demais seres vivos estão aí para nos servir. Isso fica evidente em alguns nomes de animais usados pejorativamente, como bicho, animalesco, bestial, selvagem, simiesco, burro, porco, cavalo, vaca. Além disso, procuramos nos distanciar deles, usando palavras diferentes para nós e para eles, tais como versus pata.
O etnocentrismo não poderia ser mais distante dos ideais da ecolinguagem. De acordo com ele, "certo" é o que existe em nossa cultura; o que existe só na dos outros é "errado". Essa mentalidade em levado a atrocidades como a do nazi-facismo. Ele aparece também sob a forma de racismo, que consiste em dividir a humanidade em "raças", sendo umas poucas entre elas "superiores" e as demais "inferiores". Essa mentalidade levou à escravidão e a todo tipo de sujeição dos segundos pelos primeiros.  
Em terceiro lugar vem o androcentrismo. Desde priscas eras o homem tem se considerado superior à mulher em culturas as mais diversas. Como consequência, ele tem muito mais direitos sobre ela do que ela sobre ele, e ela tem muito mais obrigações para com ele do que ele para com ela. Mais recentemente, essa ideologia tem se manifestado sob o signo do machismo e até do sexismo. Tudo isso transparece claramente nas línguas ocidentais. Vejamos um exemplo contundente. O órgão genital masculino aparece em muitas expressões, como grande pra caralho, isso é difícil pra cacete etc. Isso atribui a ele um papel "engrandecedor", por expressar a "virilidade". O da mulher é o maior tabu da língua portuguesa, de modo que ninguém ousa proferi-lo em público. 
O crescimentismo está intimamente associado a essa visão de mundo. O ideal de qualquer dirigente estatal é crescer, ou seja, ir de um estado menor para um maior. É o que almeja o desenvolvimentismo. Por trás de tudo isso, está a ideia de que "grande" é bom, e "pequeno" é ruim ou, pelo menos, não tão bom quanto o grande. Ainda bem que houve autores que ousaram afirmar que pequeno é bonito (small is beautiful), como fez Schumacher (1975).
Temos também o classismo, que talvez fosse melhor ser chamado de aulicismo, ou seja, hábitos e costumes dos áulicos, habitantes da corte. Eles se intitulavam corteses, sendo que os habitantes do campo eles chamavam de pessoas rudes, rústicas, que têm a mesma origem que "rural".  Seria a cortesia oposta à vilania, dos habitantes da vila. Uma parte da população é a elite (o escol), oposta à ralé, à plebe ou ao populacho. Poderíamos aduzir ainda pagão, gentio e outros, do lado rural, opostos à "polidez" dos áulicos. Modernamente, como não não há mais corte, opõe-se o campo à cidade. Assim, os habitantes das cidades, os urbanitas seriam os urbanos, que agiriam com urbanidade, por oposição ao comportamento dos rudes e rústicos habitantes da zona rural. Aqui entra o preconceito contra a linguagem rural, em que se dizem coisas como nóis vai, nóis vorta, cê tá bão? e outras. Nada no mundo justifica esse preconceito, motivo pelo qual a ecolinguagem não o aceita.
A ecolinguagem evita tudo isso. Todos esses -ismos vão na direção contrária à da harmonia requerida por ela, e na direção do conflito. Em vez de agregar, segregam. Em vez de integrar, desintegram.  
7. Discussão
O que é ecolinguagem, afinal de contas? Em sintonia com a visão ecológica de mundo e com o taoísmo, ecolinguagem é a linguagem que tem por lema central a harmonia, não o conflito; que defende a ideologia ecológica ou da vida, não a ideologia política (partidária, religiosa etc.). O problema com ideologias como a do próprio feminismo é que elas dividem, separam, levam a atritos (‘bom/mau’, ‘eu/os outros’ etc.), enquanto que a visão ecológica de mundo procura juntar, somar, integrar. A ideologia ecológica procura entender as expressões em um sentido meliorativo, não pejorativo. Tendo isso em mente, pode-se dizer que “ecolinguagem é linguagem ecologicamente correta”, mas só com essa ressalva.
Ainda em sintonia com ecologia e taoísmo, ecolinguagem é a linguagem da comunhão. Como sabemos, comunhão é a base para todo e qualquer entendimento. Quando as pessoas estão em comunhão, com o que estão se comunicando harmoniosamente em silêncio, nem é necessário que usem palavras. Por outro lado, linguagem não harmoniosa é incomunhão ou descomunhão, que só pode levar ao desentendimento. Tanto que se pode dizer que ‘entendimento’ está para ‘comunhão’ assim como ‘desentendimento’ para ‘incomunhão’. Atrito é ausência de entendimento, falta de comunhão. A sabedoria popular já deixa isso claro na palavra 'desentendimento'. Ele se dá em situações em que não há comunhão nem comunicação, em que as pessoas não se entendem.   
8. Observações finais
Repitamos, usar ecolinguagem é admitir e assimilar a visão ecológica de mundo. Isso implica muita coisa uma vez qaue a ecolinguagem é muito ampla. Além de um ecoléxico, há também uma ecogramática, como postulada por David Bohm, Michael Halliday e o jovem ecolinguista dinamarquês Sune Steffensen (2008). Além disso, emos o meio ambiente. Toda variedade linguística, e a ecolinguagem não é exceção, tem relações com o meio ambiente natural, o mental e o social, como previsto na linguística ecossistêmica. Enfim, praticamente todo ensaio que se insira na ecolinguística crítica, na linguística ambiental ou na análise do discurso ecológica estará tratando de questões atinentes à ecolinguagem.
Referências
Bohm, David. 2007. A totalidade e a ordem implicada. São Paulo: Editora Cultrix, 12a. ed.
Couto, Elza K. N. do & Silva, Samuel Sousa. 2013a. Análise do discurso ecológica: ecolinguagem e ecoética. Comunicação apresentada no I EBIME, UFG, 5-6/12/2013.
Couto, Hildo Honório do. 2007. Ecolinguística: Estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus. 
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Marques, Adilson. 2013. Chi kung: ecolinguagem corporal e bioenergética. Comunicação apresentada no I EBIME, UFG, 5-6/12/2013.
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[Este texto está publicado no livro Antropologia do imaginário, ecolinguística e metáfora, organizado por Elza Kioko Nakayama Nenoki do Couto, Ema Marta Dunck-Cintra & Lorena Araújo de Oliveira Borges, Brasília: Thesaurus, 2014, p. 215-224] 

Ecologia: Notas esparsas antigas

Quando disse a uma colega que devemos viver em harmonia com a natureza, ela retrucou:
- "ora, dor de cabeça é natureza; tempestade é natureza; terremoto é natureza; cobra é natureza. Enfim, muita coisa ruim é natureza".
Pois bem, aí está o grande engano dos que são contra os ecologistas. Eu, pessoalmente, não me interesso por tudo que eles apregoam, às vezes, festivamente. No entanto, procuro estar em harmonia com a natureza o quanto me permite a agitação da vida atual (hoje, 2014, não tenho mais a mesma opinião).
A referida colega, infelizmente, não entendeu o que eu quis dizer com "estar em harmonia com a natureza". Marx disse nos seus Ensaios econômicos e filosóficos, que "o homem é diretamente um ser natural". Ou seja, ele faz parte da natureza, a qual lhe garante a sobrevivência física. Só a partir daí se pode falar no ser social. Pois bem, se ele é também natureza, "viver em harmonia com a natureza" significa para ele viver em harmonia consigo mesmo.
Nunca passou pela minha cabeça que na natureza só haja "coisas boas", ou seja, alimentos saborosos e nutritivos, sombra e água fresca, conforto etc. Pelo contrário, nela tudo tem seu reverso. Se há alimentos saborosos e nutritivos, há também os venenosos; se há sombra e água fresca, há também calores e frios letais; se ela nos dá certo conforto (bem-estar), isto pode exigir certo incômodo (trabalho). E assim por diante.
Quando disse "viver em harmonia com a natureza", quis me referir, entre outras coisas, ao seguinte:
a) Não depredar a natureza. Por exemplo, para se obter uma pequena área cultivável, atear fogo numa floresta, o que devastaria quilômetros e quilômetros;
b) Não jogar os dejetos químicos nos rios, lagos e mares, como fazem as filiais das indústrias multinacionais nos países subdesenvolvidos (nos países sede elas não o fazem porque há pesadas multas que são efetivamente aplicadas). Não poluir o ambiente vital;
c) Modificar na natureza o estritamente necessário para a vida humana;
d) Não tomar drogas para dormir, defecar, contra dor de cabeça, em suma, não forçar nada naquilo que deve ser uma função natural do organismo humano. Só se deve abrir exceção para casos extremos, patológicos. Isto porque o que normalmente leva alguém a tomar drogas é um sintoma, é o efeito de alguma disfunção. É uma placa de aviso "Perigo!" Tomar a droga como primeira atitude é cortar o efeito, é tirar a placa de perigo, sem eliminar a causa, sem acabar com o perigo existente na estrada;
e) É procurar conhecê-la a fim de canalizar suas forças para o bem do homem. É eliminar apenas os animais perigosos e, mesmo assim, só no momento em que ameaçam a vida de alguém. Ou então só aqueles necessários para a alimentação do homem. A caça é um crime contra a natureza;
f) Não tentar trabalhar além do que permitem as forças físicas e mentais, ou seja, descansar na hora certa. Após um breve repouso o trabalho renderá mais;
g) Evitar alimentos químicos. O Brasil ainda é tão grande, ainda permite cultivar de tudo. Para que alimentos desse tipo?
h) Ver em todo ser humano alguém como você, como o próximo, não como um competidor, um antagonista ou inimigo. Assim você terá mais alegria de viver. E alegria é harmonia com a natureza.

Título original: "Ecologia: Notas Esparsas, 1984"
Hildo Honório do Couto (UnB).



 
 

 
 
 
 






 

Arvinha e Ecosofia A

I. Porque ecosofia A:
Se toda criança da zona rural tem sua árvore preferida, a Arvinha é a árvore de minha vida. O "A" é de 'Arvinha', mas também de 'amor', e da primeira e da última vogal de 'Capivarinha' e de 'Capelinha'. Arvinha é uma pequena árvore em que eu e meu irmão vivíamos subindo. Havia várias árvores mais imponentes, como dois ou três jequitibás bem ao seu lado (talvez por isso ela tenha recebido o nome de "Arvinha"). Nós preferíamos a Arvinha para brincar, subir em suas grimpas. Eu imaginava ter uma casa sobre seus galhos. Ela me marcou muito, ao ponto de tentar fazer um poema em que ela aparece (não sou poeta). É lá que nosso amigo Osmar chegava para brincar conosco. A Arvinha representa representava para nós lazer, prazer, brincadeira, liberdade. Hoje sabemos que representava uma ligação umbilical com a natureza.
Pois bem, o grande filósofo norueguês Arne Dekke Eide Naess, conhecido simplesmente como Arne Naess (1912-2009), criador da Ecologia Profunda, tem como um dos princípios fundamentais a autorrealização, para todos os seres, não apenas para os homens. Autorrealização é procura do próprio bem-estar, do conforto, enfim, da felicidade. Para mim e meus irmãos, a Arvinha era parte integrante dessa autorrealização. Ela inclui procurar a realização pessoal, viver em harmonia com a natureza, o que praticávamos diariamente, inclusive com a Arvinha. Havia algo como um prazer sensual, quase erótico. Mas, acima de tudo, estar nos galhos mais altos da Arvinha dava a sensação de estar no alto, mas não tão alto que representasse perigo, como nos jequitibás.
A Arvinha ficava em uma posição mais alta do que nossa casa, bem próxima dela, com o que nos sentíamos seguros e não longe das vistas de nossos pais. Com isso, nos sentíamos altaneiros, porém seguros.
Se Arne Naess chamava sua ecosofia (filosofia ecológica) de “ecosofia T”, eu passei a chamar minha filosofia de vida pessoal de “filosofia A”, tomando o “A” de Arvinha. Vejamos algumas características dessa “filosofia”:
 
II. Minhas primeiras premissas: meus princípios de vida
- Valorizo o "quê", não o "como" de tudo (comida, sexo, etc.);
- Valorizo a essência, não a aparência;
- Levo as coisas a sério;
- Valorizo as próprias raízes, a origem rural;
- Não gosto de ficar na expectativa, de esperar por nada nem por ninguém;
- Tenho tolerância e benevolência para com os fracos, não para com os arrogantes e os prepotentes;
- Não gosto de desperdiçar nada;
- Gosto de momentos de solidão (o indivíduo atual tem pavor dela);
- Gosto do silêncio (o indivíduo atual tem horror a ele);
- Gosto de música suave (a maioria dos indivíduos atuais apreciam música em um nível de decibéis que lesiona os tímpanos);
- Tenho horror ao barulho, porém, os barulhos da natureza geralmente não me incomodam (trovões, por exemplo);
- Gosto de tomar banho com água em temperatura ambiente (não quente);
- Não gosto de tomar remédio (muitas dores passam naturalmente sem eles);
- Não me preocupo com a morte: ela faz parte do processo natural da vida;
- Não acendo a luz quando a luz do sol ou da lua é suficiente nem quando não é necessário acendê-la;
- O mínimo me é suficiente; detesto exageros e ostentação;
- Ninguém é muito importante (figurão, autoridade) para mim;
- Valorizo todas as formas de vida, todos os seres; acho que aqueles seres que não valorizam os outros seres (os assassinos, p. ex.) não merecem viver com os demais;
- Não maltrato os animais, as plantas nem a natureza mineral;
- Minha maior diversão é o contato direto com a natureza. Isso traz recompensas imediatas;
- É difícil dizer o que é certo e o que é errado. Para mim, errado é o que causa sofrimento; certo, o que não o causa. De modo mais amplo, errado é o que prejudica a vida, no sentido biológico; certo, o que não a prejudica;
- Considero as "obras de arte da natureza" mais belas do que as produzidas pelos humanos;
- Formalidade versus disciplina: Há uma diferença fundamental entre as duas. O formalista nos põe para servir as regras; o disciplinado põe as regras para nos servir;
- O terrorismo não se justifica em hipótese nenhuma. Muitos movimentos perdem toda a razão que tinham ao lançar mão da violência contra inocentes.
Depois, virá mais coisa sobre a Arvinha e a Ecologia Profunda.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Bem-vindos

Prezados amigos, amigas, colegas e todo mundo,
Este blog tem por objetivo divulgar ideias, pensamentos e experiências relacionados com minha vivência na zona rural, na roça. Eu nasci numa fazenda em um local chamado Capivarinha do Chumbo, próxima uns 10 quilômetros do povoado Capelinha do Chumbo, município de Patos de Minas. Infelizmente, os políticos mudaram o seu nome para Major Porto, em homenagem a um senhor de uma localidade próxima, Chumbo ou Areado. Ironicamente, pelo que fiquei sabendo esses políticos sempre prejudicaram Capelinha do Chumbo, puxando todo e qualquer benefício para sua localidade, Chumbo.
Eu não só nasci em Capivarinha do Chumbo/Capelinha do Chumbo. Eu vivi aí até os 16 anos de idade. Só nessa idade fui conhecer a primeira cidade, Patos de Minas. Como Capivarinha do Chumbo se restringia a nossa fazenda e a de alguns parentes, o nome que mais ficou na minha memória é Capelinha do Chumbo.
Para se ter uma ideia de minha ligação com este local, havia uma pequena árvore, a Arvinha, em frente a nossa casa que me marcou muito, pois vivíamos encarapitados nela, além de nos abrigarmos do sol embaixo dela.
Aqui está um poema que fiz como catarse pela tristeza com a mudança do nome de Capelinha do Chumbo para Major Porto. Ele foi publicado no Prefácio do livro Ecolinguística: Estudo das relações entre língua e meio ambiente (Brasília: Thesaurus, 2007), página 15. Esse livro se insere no contexto de minha atividade profissional com a Ecolinguística, sobre a qual tenho outro blog, cujo endereço é:

CAPELINHA DO CHUMBO

Eu nasci na Capivarinha,
a Capivarinha do Chumbo.
Mas, entre ela e ocê, Capelinha!,
que é tamém do Chumbo,
tava o meu mundo.

Cresci veno a serra do Parmital,
a serra do Roxa e a Capetinga
‑ é de lá que a chuva vinha! ‑,
o corgo das Batata, o dos Miguel,
a fazenda do Juca, a do Quinca e a do Nadim.

Na beira da estrada na frente da casa
ficava as binga e a Arvinha.
É lá que o Osmar chegava,
é lá que passava as pessoa
que ia pa Capelinha.

O trem era dos mais bão.
Eu rolava na puera com o Pacheco,
namorava a Branca, a Zirda
ou a Teresinha Xavier.
Eu só tinha medo do Mato Seco.

Quando eu vortei pa vê ela, disse:
"Uai, cadê a Capelinha?!"
"Agora ela é Major Porto!"
Foi o que disse o Churim.
Sô, não existe mais a que foi minha!

Brasília, 22/12/1991, 18h05min