terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Ecocrítica

ECOCRÍTICA1
Hildo Honório do Couto
Universidade de Brasília

[O universo inteiro] é um vasto representame, um grande símbolo ..... um argumento ..... necessariamente uma grande obra de arte, um grande poema... uma sinfonia .... uma pintura (Peirce, Collected papers 5.119)


Ecocrítica não é o mesmo que a ecolinguísica, pois esta se insere em uma visão linguística da realidade, como o próprio nome já dá a entender. A ecocrítica faz parte de uma longa tradição literária, ou melhor, de crítica literária. Embora, como vimos, linguística e estudos literários tenham muitos pontos de contato, se não uma história comum, nos últimos anos cada uma tomou caminhos diferentes, de modo que atualmente é difícil especialistas das duas áreas dialogarem. Isso é consequência da fragmentação do conhecimento que se verifica no mundo atual, o que vai na direção contrária do desiderato de algumas correntes de pensamento, como as teorias da física, os sistemas complexos e a ecologia. Um dos objetivos da ecolinguística, e da ecocrítica, é justamente tentar ir contra essa tendência, fornecendo as bases para uma reunificação do conhecimento. Tanto ecolinguistas quanto ecocríticos estudam a sua árvore específica, mas não ignoram o fato de que ela faz parte de uma floresta. Essas bases, naturalmente, são dadas pela visão ecológica do mundo.
Apesar de a ecocrítica não ser ecolinguística, há uma área desta que apresenta muitas afinidades com ela. Trata-se da versão da linguística ecossistêmica que se chama análise do discurso ecológica/ecossistêmida (ADE). Neste mesmo blog há um texto sobre ADE, disponível aqui:
http://aarvinha.blogspot.com.br/2014/07/linguistica-ecossistemica-critica-ou.html
As ideias defendidas pela ecocrítica existem desde que o ser humano começou a produzir literatura, escrita ou oral. Na literatura latina e na grega, temos inúmeros exemplos. Nas literaturas europeias, sobretudo as latinas, tivemos o movimento do arcadismo, em que se falava da natureza, embora de modo um tanto distanciado e abstrato. Os romances realistas (naturalistas) de final do século XIX defendiam a ideia de que os elementos da natureza estão organicamente associados, sujeitos às mesmas leis. Aliás, algumas de suas referências eram justamente Haeckel, Darwin, Spencer e Taine. Praticamente todas as tradições orais mostram um mundo em que não apenas fauna e flora entram como personagens. Até aspectos do território, como montanhas, rios, lagos podem exercer esse papel.
Mais recentemente, surgiu um movimento chamado de nature writing (escrito sobre a natureza, escritura natural), cujo patrono é Henry David Thoreau (1817-1862). A tendência foi mais forte na Nova Inglaterra, nos Estados Unidos, onde surgiu o movimento conhecido pelo nome de transcendentalismo, cujo representante principal era justamente Thoreau, ao lado de Ralph Waldo Emerson (1803-1882), do naturalista John Muir (1838-1914) e muitos outros, como Amos Bronson Alcott (1799-1888). Além do envolvimento com as letras, eles literalmente defendiam uma volta à natureza.
Emerson é um conhecido poeta. Vários de seus ancestrais eram ministros de igreja. Ele próprio se tornou ministro da igreja unitária em 1829, tendo renunciado ao cargo por considerar que não poderia exercê-lo em sã consciência. Estabeleceu-se em Concord, Massachusetts, em 1833, como escritor e conferencista. Seu primeiro livro publicado foi Nature (1836), no qual já se pode ver o essencial do transcendentalismo americano. Juntamente com Thoreau e Alcott, percebeu que o conhecimento espiritual podia ser recebido diretamente pela razão, mediante a intuição humana. Com Margaret Fuller e George Ripley, fundou o periódico Dial, destinado a publicar textos dos transcendentalistas. Em todos os seus escritos nota-se um desejo de harmonia com a natureza. Geralmente, os fatos naturais são os principais personagens de seus escritos, tanto em poesia quanto em prosa.  Vejamos o poema "Fable", reproduzido de Williams (1966: 347-348). Na coluna da esquerda temos o poema original; na direita, uma tradução literal.

      Fable                                                                              Fábula
The mountain and the squirrel                              A montanha e o esquilo
Had a quarrel;                                                       Tiveram uma discussão;
And the former called the latter "Little Prig".      A primeira chamou o último de "Pequeno arrogante".
Bun replied,                                                          O pequeno respondeu
"You are doubtless very big;                               "Você é certamente muito grande
But all sorts of things and weather                      Mas toda sorte de coisas e tempo
Must be taken in together                                    Precisam ser juntadas
To make up a year                                               Para se fazer um ano
And a sphere.                                                       E uma esfera.
And I think it's no disgrace                                  E eu acho que não é nenhuma infelicidade
To occupy my place.                                           Ocupar o meu lugar
If I'm not so large as you,                                   Se eu não sou tão grande como você,
You are not so small as I,                                  Você não é tão pequena como eu,
And not half so spry.                                         Nem a metade tão ágil
I'll not deny you make                                       E não vou negar que você faz
A very pretty squirrel track;                              Uma boa estrada para esquilo;
Talents differ: all is well and wisely put;          Os talentos diferem: tudo está bem e sabiamente posto;
If I cannot carry forests on my back,                Se eu não posso carregar florestas em minha costas,
Neither can you crack a nut"                            Tampouco você pode quebrar uma noz".


Note-se que os versos de número 12 e 13 (Se eu não sou tão grande grande como você / Você não é tão pequena como eu) antecipam algo que os ecolinguistas viriam a defender, ou seja, a ideia de que "grande" não significa melhor do que "pequeno" (Fill 1993). Para o taoísmo, uma das fontes de inspiração da ADE, conceitos polares como estes se articulam ao longo do mesmo eixo, de modo que um só existe em relação ao outro. No caso, o grande depende do pequeno para existir, e vice-versa (Couto 2012).
Throreau foi talvez um dos naturalistas mais radicais do grupo. Ele era ensaísta, filósofo e naturalista. Morou dois anos na casa de Emerson, que o pôs em contato com outros intelectuais da região que tinham ideias semelhantes. Assumiu a direção de Dial por um curto período em 1843. Em 1845, ele construiu uma cabana na praia de Walden Pond, onde viveu sozinho durante dois anos com o que conseguia arranjar com as próprias mãos. Walden (1854) virou o nome de um de seus livros mais conhecidos. Nesse período, estudou a natureza, meditou sobre problemas filosóficos. Mas, não se isolou como um ermitão misantropo que ele não era. Manteve contato estreito com as pessoas da região. Envolveu-se intensamente na política da época, até contra a escravidão, tendo preferido, juntamente com Alcott,  ir para a prisão a apoiar a Guerra Mexicana (1846-1848). Em Desobediência civil (1849), ele discutiu a questão da resistência passiva, como faria Mahatma Gandhi (1869-1948) mais tarde. Morreu de tuberculose, talvez consciente de que as doenças também fazem parte da natureza, muitas vezes por não a respeitarmos.
O percurso de Thoreau lembra muito o do filósofo norueguês Arne Naess (1912-2009), que até próximo da morte praticou montanhismo. Naess é o criador da chamada ecologia profunda (deep ecology) que defende a igualdade de todos os seres, que teriam valor em si mesmos. Ele era seguidor das ideias de Gandhi. Não é para menos que viveu grande parte de sua vida em uma cabana no alto de uma montanha nas proximidades de Oslo, praticando o que os escandinavos chamam de friluftsliv, literalmente "vida ao ar livre" (Sandell 1993, Henderson 1997). Mas, nada disso é novidade: entre os gregos temos o exemplo de Diógenes de Sinope, o cínico, que, já antes de Cristo, fora até mais radical do que Thoreau e Naess. Mais informações sobre a ecologia profunda e Arne Naess em Couto (2012: 49-67)
John Muir não era nem da literatura nem da filosofia; ele era botânico, glaciologista, naturalista e ecologista. Mas, antes de tudo era um conservacionista. Não é para menos que tenha se aliado aos transcendentalistas, sobretudo Emerson e Thoreau. Junto com eles, estava convicto da necessidade de não se distanciar da natureza. Ele quase sempre levava textos desses autores em suas constantes incursões pela serra Nevada e outros lugares. Nos meios literários e filosóficos, Muir é menos conhecido do que Emerson e Thoreau, mas entre os ambientalistas é tão reverenciado quanto eles. Com efeito, ele defendia abertamente a cura pela natureza. Aconselhava os urbanitas a fugirem da vida nas grandes cidades de vez em quando, mesmo que não gostassem disso. Para ele, mesmo assim o efeito benéfico se manifestaria (cf. Miles 1986: 11). Na América do Norte existem diversas instituições que levam seu nome, tais como ONGs, clubes, associações, companhias de turismo, movimentos conservacionistas e assim por diante.
Fiquemos aqui no que tange ao transcendentalismo. Quem quiser mais informações sobre ele, pode consultar Howard (1964), Miller (1957) bem como qualquer livro de história da literatura norte-americana. Vejamos agora o que vem a ser nature wringing.
De acordo com Lyon (1996: 276), "a literatura da natureza apresenta três dimensões principais: informação sobre a história natural, respostas pessoais à natureza e interpretações filosóficas da natureza". Nesse sentido, os três autores recém-mencionados são legítimos nature writers. Lyon apresenta uma classificação de textos e autores que se enquadram nessa categoria. Entre os tipos de textos temos: 1) guias e textos profissionais, tais como Systematic geology (1878) de Clarence King, A field guide to animal tracks (1954) de Olaus Murie,  A field guide to Western birds (1961) de Roger Tory; 2) ensaios de história natural, como Studies in the Sierra (1874-1875) de John Muir, The sea around us (1950) de Rachel Carson2, The land above the trees (1972) de Ann Zwinger & Beatrice Willard, Spirit of survival (1974) de John Hay; 3) textos sobre a vida solitária em rincões distantes da zona rural, como Walden (1854) de Thoreau, entre outros; 4) viagens e aventuras como Travels (1791) de William Bartram, The Maine woods (1865) de Thoreau, Arctic dreams (1986) de Barry Lopez, etc.; 5) vida na fazenda, entre eles, A continuous harmony (1972) de Wendell Berry; 6) o papel dos humanos na natureza, como Accepting the universe (1920) de John Burroughs; 7) passeios sem destino, como Rambles of a naturalist (1828) de John D. Godman, From Laurel Hill to Siler's Bog de John K. Terres e outros. O fato é que a nature writing não entra em nenhuma classificação rígida. Em princípio qualquer texto que verse sobre uma experiência direta com a natureza se enquadraria nela.
A tendência da nature writing se manifestou em diversos outros países. Aliás, a própria nature writing americana teve influências da Inglaterra, sobretudo de A natural history of Selbourne (1789) de Gilbert White. Poderíamos mencionar também a Estônia. Segundo Maran & Tüür (2001), a relação dos estonianos com o meio ambiente vem sendo representada em textos desde o final do século XVII e começo do XIX, como fizeram Otto Reinhold von Holtz (1757-1828), Otto Wilhelm Masing (1763-1832), e como se pode ver na poesia pastoril de Kristjan Jaak Peterson (1801-1822). Frequentemente, essa atitude tinha por pano de fundo uma afirmação da identidade estoniana, segundo a qual, para se auto-designarem os estonianos usavam expressões como "povo da terra" ou então se referiam à língua como "a língua da terra". Conhecimentos relacionados com a oralidade foram recolhidos por Jakob Hurt (1839-1907), nos quais se notam observações sobre sinais da natureza e mudança de tempo. Chegou-se a dizer que os estonianos são "povo da natureza".  Com o advento do regime soviético, por incrível que pareça, essa tendência naturalista se acirrou, "ideias sobre proteção da natureza e de proteção da nação estoniana se fundiram".
O fato é que o apego à natureza continuou nos intelectuais estonianos, quase sempre levando-se em conta o conhecimento científico. Uku Masing destoa deles, apresentando uma visão mais intuitiva e autobiográfica, como em Lembrança de plantas. Uma das imagens mais presentes em sua poesia é a da árvore, não no sentido do dendrólogo, mas no do dendrófilo. Ele não gostava das pessoas para as quais "o nome era mais importante do que a própria árvore". Alan Drengson (1984) afirma que "uma árvore, p. ex., pode ser vista como um objeto, mas pode também ser vista como um elemento estético (...) de uma tapeçaria maior, que faz parte do grande espírito da beleza natural que anima rituais e cerimônias que celebram a grande obra de arte da natureza".
No Brasil, um dos autores que se aproximou do que fizeram Emerson, Thoreau e Muir é o pouco conhecido Carmo Bernardes (1915-1996), autodidata e ambientalista na prática. Ele chamou os mineiros que vinham de Patos de Minas e Patrocínio para Anápolis de "fazedores de deserto". Em suas palavras,

Em menos de vinte anos, os mineiros jogaram no chão com seus machados e suas foices afiadas, deixando apenas aqui e acolá uma pequena reserva para tirar uma madeira ou outra, não só os cinco mil hectares da fazenda Antônio Dâmaso, como a mancha inteira do chamado Mato Grosso Goiano (apud Nunes 2015: 216).

Poderia mencionar ainda  Mário Palmério (1916-1996). Além de professor, construtor de escolas e faculdades, político e diplomata, isolou-se em uma fazenda de sua propriedade em Mato Grosso, onde terminou Chapadão do Bugre (1966). Antes, já havia produzido Vila dos confins (1956). Durante vários anos percorreu os rios da Amazônia em um barco, colhendo dados da flora, da fauna e da cultura dos povos locais. Permaneceu lá até 1987, retornando a Uberaba, onde passou a presidir as Faculdades Integradas. Há diversos outros escritores que apresentam de modo vivo dados do meio ambiente onde residem, mas não viveram esse meio ambiente como os autores norte-americanos.
Nesse contexto, o poeta russo Postnikov (2001) acrescenta o que chama de ecopoesia, que retrataria "o sentimento sagrado de unidade com a natureza". Postnikov cita vários exemplos, começando pela poesia chinesa do período Tan (618-907). Ele considera os haicais japoneses, localmente chamados de haiku, uma continuação dessa tendência; são poemas curtos, de 17 sílabas, que falam de aspectos da natureza. Um dos primeiros e mais famosos representantes dessa manifestação da literatura japonesa é Matsuo Basho (1644-1694), cuja posição frente à natureza antecipou de séculos a de Thoreau. Eis um exemplo de haicai de Basho de 1666, em japonês e com tradução portuguesa (cf. Basho 1997).

  samazama no       quantas memórias
  koto omoidasu    me trazem à mente
  sakura ka na       cerejeiras em flor

Arran Stibbe acrescenta que os haicais são um ótimo exemplo de manifestação linguística em que se pode ver uma alternativa ao discurso ecologicamente correto. Trata-se do ativismo poético, que emerge do "poder da língua de fazer coisas novas e diferentes serem consideradas importantes", contrariamente à higiene verbal, com suas proscrições e prescrições, que cheiram a totalitarismo e fascismo. Stibbe apresenta o seguinte haicai de Uejima Onitsura:

  gyozui no              Nenhum lugar
  sutedokoro naki    para jogar a água do banho
  mushi no koe        som de insetos

Stibbe acrescenta que para se entender esse poema, é preciso conhecer a cultura japonesa. Nas casas tradicionais, não havia sistema de encanamento de água, com o que Uejima tinha que jogar a água do banho para fora. No entanto, ele ouviu o som dos insetos, do que teria deduzido que se jogasse a água fora da casa, perturbá-los-ia. Subjacente a tudo isso está a ideia de que todas as espécies vivas têm valor em si mesmas, e devem ser respeitadas, como apregoa  ecologia profunda, de que The trumpeter é o órgão oficial (http://trumpeter.athabascau.ca/index.php/trumpet ). O haicai de Uejima revela a sensibilidade para esse fato de modo lacônico, mas altamente poético. Portanto, sem ser autoritário como a chamada higiene verbal, o haicai chama a atenção para fatos ecologicamente importantes de modo suave e natural (Stibbe 2004a).
Como se pode ver, o objetivo nos haicais não é convencer se a natureza é boa ou má, mas de que ela é simplesmente natureza, e como o poeta capta um de seus aspectos. Postnikov acrescenta ainda, entre os que produziram ecopoesia, Walt Whitman (1819-1892), Rabindranath Tagore (1861-1941) e Wolfgang Goethe (1749-1832), entre outros.
Voltemos à ecocrítica propriamente dita. Glotfelty traça sua história recente. Em 1985, Frederick O. Waage organizou a coletânea Teaching environmental literature: Materials, methods, resources. Em 1989, Alicia Nitecki fundou a The American Nature Writing Newsletter e, em 1990, a University of Nevada, Reno, criou a primeira disciplina Literatura e Meio Ambiente. No ano de 1991, houve uma sessão especial da MLA, organizada por Harold Fromm, sob o título de "Ecocriticism: The greening of Literary Studies". No simpósio de 1992 da American Literature Association, Glen Love organizou a mesa-redonda "American Nature Writing: New Contexts, New Approaches". Ainda em 1992, fundou-se a Association for the Study of Literature and Environment (ASLE), durante o encontro anual da Western Literature Association. No site da ASLE (https://www.asle.org acesso: 20/10/1005) há muito material de interesse para a área. Em 1995, houve o primeiro encontro da ASLE em Fort Collins, Colorado. Atualmente, existem diversas associadas da ASLE em todo o mundo, inclusive no Brasil, presidida por Zélia Monteiro Bora (http://asle-brasil.com/ ). Até o presente momento (2017), já houve três ediçoes do Congresso Internacional de Literatura e Ecocrítica (CILE) na Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. Em 1993, Patrick Murphy fundou a revista ISLE: Interdisciplinary Studies in Literature and Environment.
Como se pôde ver, o ambiente para o advento da ecocrítica começou a ser preparado há muito tempo. O próprio termo "ecocrítica" foi cunhado por William Rueckert no final da década de 70 sob o nome de "ecocriticism" em inglês (cf. Rueckert 1996). Mas, em épocas anteriores há diversas manifestações que vão na mesma direção, como se pode ver na coletânea Glotfelty & Fromm (1996). No entanto, foi só a partir de 1990 que o movimento que leva o nome de ecocrítica tomou fôlego e deslanchou.
Quando se fala em ecocrítica, os dois nomes que vêm à tona de imediato são o de Lawrence Buell e Cheryll Glotfelty. O primeiro é autor de The environmental imagination: Thoreau, nature writing, and the formation of American culture (Cambridge: Harvard University Press, 1995), a que não tive acesso. A segunda é talvez a líder do movimento, sendo também coautora principal de uma coletânea sobre o assunto (Glotfelty & Fromm 1996).
Nessa coletânea, há diversos ensaios cujo objetivo é responder à pergunta "O que é ecocrítica?". Com o fito de dar respostas preliminares à pergunta, eu vou partir do que diz Glotfelty na "Introduction". De acordo com ela, "posto de modo simples, ecocrítica é o estudo das relações entre literatura e meio ambiente físico". Acrescenta que "assim como a crítica feminista examina a linguagem e a litertura da perspectiva da consciência sobre gênero, e a crítica marxista enfatiza os modos de produção e a questão de classe econômica na leitura dos textos, a ecocrítica assume uma postura terrocêntrica nos estudos literários" (p. xviii). Em suma, os ecocríticos parecem até mais radicais do que os ecolinguistas, uma vez que os últimos raramente relacionam língua diretamente com meio ambiente físico. Uma das raras exceções é o que se vê no ramo do ramo da ecolinguístca chamado linguística ecossistêmica. Nele temos o ecossisema natural da língua que, como o nome já diz, tem a ver justamente com as relações entre a língua e o meio ambiente físico (mundo, entorno). 
Glotfelty acrescenta algumas perguntas que os ecocríticos frequentemente se fazem, ao analisar um texto. São elas: 1) "Como a natureza está representada neste soneto? 2) Que papel o cenário físico exerce no enredo deste romance? 3) Os valores expressos nesta peça são consistentes com a sabedoria ecológica? 4) Como as nossas metáforas sobre a terra influenciam o modo pelo qual a tratamos? 5) Como podemos caracterizar a escrita natural como um gênero? 6) Os homens escrevem sobre a natureza diferentemente das mulheres? 7) Como e até que ponto o próprio letramento afetou a relação da humanidade com o mundo natural? 8) Como o conceito de mundo selvagem mudou ao longo dos tempos? 9) Como e para que a crise ambiental vem se imiscuindo na literatura contemporânea e na cultura popular? 10) Que concepção da natureza está embutida nos relatórios do governo, nos anúncios das grandes corporações industriais, nos documentários televisivos sobre natureza, e com que objetivo? 11) Que influência poderia a ciência da ecologia ter sobre os estudos literários? 12) Até que ponto a própria ciência é passível de análise literária? 13) Que vantagens mútuas seriam possíveis entre estudos literários e discurso ambiental em disciplinas relacionadas como história, filosofia, psicologia, história da arte e ética?" (p. xviii-xix). Buell (1999) acrescenta mais seis características, que basicamente se sobrepõem às de Glotfelty.
Como reforço à definição dada acima, a autora afirma que "toda crítica ecológica contém a premissa fundamental de que a cultura humana está ligada ao mundo natural, afetando-o e sendo afetada por ele".  O que é mais, "a ecocrítica expande a noção de 'o mundo' a fim de incluir toda a ecosfera". Como se vê, a ecocrítica, assim como a ecolinguística e, certamente, todas as disciplinas eco-, é multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. Com isso, ela "consiste não de um paradigma metodológico central de pesquisa, mas de um compromisso multiforme com a urgência de reabilitar o que foi efetivamente  marginalizado pelas concepções sociais dominantes" (Buell 1999). Em suma, a ecocrítica se identifica não tanto pela teoria, mas pelo objeto de estudo, o que Sarver (1994) também deixa explícito, embora ache que a ecocrítica está relacionada mais com o ambientalismo do que com a ecologia, contrariamente ao que Glotfelty e Buell e outros afirmaram.
No que tange a exemplos de análises ecocríticas de obras, literárias ou não, poderíamos lembrar a maioria dos ensaios contidos em Glotfelty & Fromm (1996). Entre eles, eu gostaria de ressaltar a análise que Harold Fromm (1996) faz da carta de uma leitora a propósito de textos dele próprio sobre poluição. Eis a tradução da carta (na imprensa brasileira podemos respigar cartas de leitores semelhantes a essa aqui e ali):

Prezado senhor,
Uma vez que todos os ambientalistas que se preocupam com a poluição também são consumidores dos produtos dessas plantas arrotadoras (por exmplo, os automóveis nos quais o senhor chega a sua fazenda), qual É a resposta? Devemos cortar nosssos narizes para evitar que repiremos? Devemos destruir nossa economia: eliminar muitas necessidades da vida; voltar a viver em tendas em prol do ar puro? As respostas são complexas.

Reconhecendo que se trata de uma carta perturbadora, vinda de alguém sensível ao problema da poluição, Fromm demonstra que a autora não captou a essência da questão. O que ela entende por "necessidades da vida"?. O autor argumenta que para ela "necessidades da vida" são as coisas que se referem apenas àquilo que suporta o que ela considera importante para si como ser mental, seu ego. Ela não pensa que o ar puro é base para a vida. De acordo com ele, "ela ingere alimentos, bebe água, respira ar, mas não vê esses atos como bases para a vida. Eles seriam atos que apenas coincidiriam com sua vida, uma vez que sua vida são seus pensamentos e desejos. A pureza dos elementos que viabilizam sua vida não é vista como necessidades da vida. Sua existência no mundo de algum modo toma conta de si mesma; nesse caso, para que sacrificar 'necessidades' da vida 'em prol' de superfluidades como 'ar puro'". O autor continua a análise. Basta, no entanto, lembrar que, para a zelosa leitora, necessidades da vida são aquelas que o consumismo capitalista criaram. Os alimentos vêm do supermercado, a temperatura vem dos aparelhos de ar condicionado, a água vem das torneiras e assim por diante. Fromm salienta que as coisas ficariam mais claras se formulássemos as perguntas de modo mais contundente: "Devemos deixar de fumar para evitar câncer de pulmão?" ou "Devemos deixar de fumar para permanecer vivos?". Ele conclui que as 'necessidades' a que a leitora alude não são necessidades do ponto de vista da existência biológica.
Tudo isso se deve ao distanciamento que mantemos da natureza na atualidade. Nosso contato com ela se dá por extensões, como dizia Marshall McLuhan (McLuhan & Fiore 1967). Hoje as pessoas acampam levando geladeiras, televisão, aparelhos de ar condicionado e tudo mais, além de caixas acústicas que fazem tremer as folhas das árvores e deixam os animais das redondezas com medo. Sanders (1996) relata o caso de uma família que encontrou em um acampamento, dentro de um "trailer", bem distante dos pinheiros, com as portas e cortinas fechadas, o ar condicionado ligado, vendo um filme de Tarzan. Fromm (1996: 32-33) acrescenta que "o homem ocidental vive alheado da natureza, exceto quanto irrompe um terremoto ou um caso de câncer. Ele vive inconsciente de que suas ligações inextricáveis com a natureza estão artificialmente veladas pela tecnologia moderna. Mesmo quando interpretamos a natureza, interpretamos uma ficção, um mito. Melhormente, "descrevemos imagens, não realidades" (Byerly 1996: 57).
No livro intitulado Introducción al la poesía más que humana de Pablo Antonio Cuadra: Un estudio ecocrítico, Steven White faz uma  detalhada análise da obra desse poeta nicaraguense de uma perspectiva ecocrítica. Na Monash University, Austrália, há projetos de estudo ecocrítico da obra de Miguel Delibes e da literatura pastoril espanhola. Em algumas universidades já vêm sendo defendidas dissertaçõe de mestrado e teses de doutorado. Enfim, já existe alguma coisa, inclusive em espanhol e em português, como o livro Ecocrítica de Greg Garrard (Brasília: Ed. UnB, 2006) embora, nesta última língua ainda se trate de tateantes tentativas de aproximação ao tema. Pode até haver outras (e deve havê-las) que eu desconheço.
Retomemos a idéia do poeta estoniano Uku Masing mencionada acima de que a árvore é mais importante do que seu nome. Pelo menos para os ecologistas profundos (não necessariamente radicais), diversos aspectos da natureza são mais bonitos do que algumas obras de arte. Assim, a maior e mais imponente obra arquitetônica com que temos contato é a nossa grande casa terráquea, o que fica patente quando vemos sua imagem feita a partir do espaço. Para os que aqui estão, seu teto é constituído pela abóbada celeste, seu piso é o próprio chão sobre o qual vivemos e suas paredes são os limites do horizonte. Na literatura oral crioula da Guiné-Bissau, isso está representado na seguinte adivinha (Couto 2005):

N tene un kasa garandi; i ten tetu, ma i ka ten firkija / seu
"Eu tenho uma casa grande, que tem teto, mas não tem esteios (forquilhas) / céu'

Ao falar em adivinhas, entramos no domínio da literatura oral. Em todas as suas manifestações, não apenas seres humanos, mas também animais, plantas, rios, lagos, montanhas e outros aspectos físicos do meio ambiente entram em ação. Nas fábulas contidas em Montenegro & Morais (1979), temos, por exemplo, "Kamaradia ka bali' (Amizade não é possível), em que há uma disputa entre a serpente irã-cego (parecida com a sucuri) e o fogo. Na fábula "Tchon ku deus' (A terra e Deus), a terra tenta mostrar que é mais poderosa do que Deus, e se dá mal. Nas demais fábulas da coletânea, toda sorte de personagens entram em ação. Para o caso das narrativas orais, dos provérbios e das adivinhas crioulo-guineenses, pode-se consultar Montenegro (1995, 1996), além de Montenegro & Morais (1979).
Vejamos o que dizem Montenegro & Morais (1979) a propósito das adivinhas, reproduzido em Couto (2005). "No mundo das adivinhas tudo é permitido. Sem pedir licença, pedras, rapazes, bombolons e formigas entram e saem uns nos outros, uns dos outros, numa troca de papéis que não ameaça deter-se e está sempre a começar. A natureza mete-se no corpo das pessoas e desloca-se através dele à vontade, os objectos têm fôlego de pecador [= ser humano]. A abelha é uma rapariga que está sempre a cozinhar um mesmo prato delicioso, todo o formigueiro bate palmas cada vez que alguém passa, o rosto é uma casa com janelas nos olhos e estes costumam ser amigos; mas nem sempre - às vezes dormem na mesma casa sem se conhecer". Alhures, a autora afirma que "a adivinha veicula normalmente, numa forma leve e sugestiva, conhecimentos que correspondem às necessidades da vida no meio em que circulam", para "dar-lhe o sentido exacto no confronto com a realidade". Enfim, "as situações e imagens mais correntes nestas adivinhas dizem respeito à vida e ao trabalho das pessoas no campo". Tirando-se o antropocentrismo, que os ecologistas rechaçam, trata-se de um verdadeiro comentário ecocrítico avant la lettre.
De acordo com Manes (1996), nas culturas animistas, não só pessoas, mas também animais, plantas, e até mesmo entidades "inertes" como pedras, rios e toras de madeira comunicam intra- e interespecificamente. Todos têm linguagem. Todas essas narrativas são muito mais importantes como criação do que muitos romances de renomados escritores. Mas, as "obras" da natureza sobrepujam criações humanas em outras áreas, como passaremos a ver sucintamente. Silko (1996) analisa narrativas dos habitantes dos pueblos da América do Norte. Branch (1996) fala da escritura natural em três autores americanos, ou seja, Bartram, Wilson e Audubon. Norwood (1996) trata de três autoras que, de modos diferentes, relataram suas experiências com a natureza. Slovic (1996) também trata do assunto.
Há milhares, se não milhões, de aspectos da natureza que maravilham seus visitantes. Um primeiro que eu gostaria de aduzir é o pôr-do-sol visto da ponte sobre o rio em Barra do Garças (MT). Na verdade, essa vista é muito mais esplendorosa do que o quadro Trigal com corvos de Van Gogh, por exemplo. O Grand Canyon (Byerly 1996: 59), as Cataratas do Iguaçu, o Kilimandjaro e o Monte Fuji são muito mais belos do que qualquer obra arquitetônica que se vê por aí. Outros exemplos seriam a visão do mar, a aurora boreal, um vale verdejante, o deserto do Sahara etc. Como se pode ver no texto do cunhador da expressão "ecocrítica", William Rueckert, para Ian McHarg a natureza é criativa. Assim, "plantas verdes, por exemplo, contam-se entre os organismos mais criativos da face da terra. Elas são os poetas da natureza". Enfim, "os poemas são plantas verdes entre nós" (Ruckert 1996: 111). Os seguidores da ecologia profunda de Arne Naess chegariam mesmo a inverter a formulação, dizendo que "as plantas são poemas" (dendro-poemas, diria eu), se bem que alguns considerariam isso uma manifestação do antropocentrismo, e que as plantas são pura e simplesmente plantas.
Da perspectiva da ecologia, sobretudo da ecologia profunda, deve ser ressalvado que nem sempre apenas aquilo que o senso comum considera "belo" é efetivamente magnífico, grandioso. Mary Austin, por exemplo, considerava como admiráveis inclusive cobras, desertos, tempestades e assemelhados. Aliás, ela morava numa região desértica, mas não vivia reclamando da inclemência do tempo, como a maioria das pessoas faz. A propósito, quem não sente uma certa "beleza" no relâmpago, no trovão e na imagem de um tornado? (Norwood 1996: 331-334). O próprio Darwin (1951) afirmou que "a seleção natural é tão incomensuravelmente superior às insignificantes realizaçõs humanas, quanto obras da natureza são superiores às obras de arte" (67). Em outra passagem, ele afirmou que "até certo ponto, podemos entender como é que existem tantas belezas em toda a natureza" (447). Um outro estudioso da linguagem da natureza que a considera obra de arte é Uexküll (1940). Ao longo de toda a obra, ele fala do ambiente de cada ser vivo, salientando a significação de uns para os outros. Se Darwin sempre usava a metáfora "economia da natureza", Uexküll usa a metáfora das obras de arte, sobretudo a música. Por exemplo, no capítulo IX, ele fala em sinfonia da natureza, com seus pontos e contrapontos, com seus instrumentos e respectivos papéis no contexto da sinfonia. Citando Goethe, Uexküll afirma que "a flor e a abelha se relacionam ao modo de um contraponto". Lutzenberger (1991: 79-86) defende ideias semelhantes.
O meu objetivo ao salientar os "quadros", as "esculturas" e as "obras arquitetônicas", ou seja, algumas maravilhas da natureza, não é diminuir o valor das grandes obras de arte que compõem o acervo histórico da cultura mundial. Pelo contrário, o que eu quis mostrar é que, pelo menos para algumas pessoas, o ambiente construído não é necessariamente mais bonito nem, muito menos, mais precioso do que o ambiente natural. Antes de haver ambiente construído já havia ambiente natural, e após o desaparecimento (em grande parte pela intervenção predatória dos humanos) do ambiente construído ainda haverá ambiente natural, seja lá como for que ele se apresente da perspectiva humana. Uma prova disso é a Lua e o planeta Marte.

Nota
1. Este texto é uma versão revista e ampliada do último capítulo de meu livro Ecolinguística: Estudo das relações entre língua e meio ambiente (Brasília: Thesaurus, 2007, p. 434-442). O livro está disponível em:
http://www.thesaurus.com.br/livro/1570/ecolinguistica-estudo-das-relacoes-entre-lingua-e-meio-ambiente/

2 Rachel Carson é autora do livro que desencadeou todo o movimento ambientalista, ou seja, Silent spring (Silent spring. Greenwich, Conn.: Fawcett Publications, 1962), 'primavera silenciosa'.

Referências
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1) Revista de ecolinguística:



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