domingo, 25 de fevereiro de 2018

O falar capelinhense: uma visão sociolinguística


[Capa de 2018]





Hildo Honório do Couto









O Falar Capelinhense

Uma Visão Sociolinguística

















Editora Arvinha



2018











[capa original]







Hildo Honório do Couto









O Falar Capelinhense

Uma Visão Sociolinguística











Universidade Estadual de Londrina

Londrina

1974








ÍNDICE



Índice  ........................................................... 3



Nota prévia  ..................................................4



Prefácio........................................... .............6



0. Introdução........................ .......................8

1. Sintagmática

1.0. Introdução................. ....................16

1.1. Sintaxe............................ ...................16

1.1.1. Período........ .........................14

1.1.2. Oração........................... .................15

1.1.3. Colocação....... ...............................18

1.1.4. Regência................ ........................19

1.1.5. Concordância..  ..............................19

1.2. Morfologia............................... ........22

1.2.1. Flexão nominal.. ........................ ..22

1.2.2. Flexão verbal................ .................24

2. Léxico...... ...........................................28

2.1. Onomástica................................. 28

2.1.1. Antroponímia.......... ...........28

2.1.2. Toponímia.......................... ..........31

2.1.3. Zoonímia............................. .........33

3. Fraseologia.........................................35

4. Fonologia............. ..............................39

4.1. Consoantes.... ............................40

4.2. Vogais.................. ...........................45

4.3. Semivogais............. ........................47

4.4. Estruturas silábicas .. .......................50

4.5. Prosódia.................... ......................52

5. Conclusão..................... .....................56

Bibliografia.........................  .................57



APÊNDICES

I. Transcrição da fala de Ferro Veio ......... ...........................................................60

II. A forma de negação num em português............................................................61

III. Nomes de animais domésticos brasileiros.......................................................64




NOTA PRÉVIA



Este livro é produto de uma pesquisa feita em 1974 na localidade de Major Porto (antigamente “Capelinha do Chumbo”), que resultou em uma monografia no mesmo ano, intitulada O Falar Cepelinhense: Uma Visão Sociolingüística, e que estava inédita até agora. Há uma cópia dela na biblioteca da Universidade Estadual de Londrina, uma na UNIPAM de Patos de Minas (que foi excluída do acervo) e outra na Biblioteca Municipal de Londrina. Afora essas cópias, só existe mais uma, a original, em meu poder.

Decidi divulgar a monografia agora sem nenhuma modificação, exceto erros de digitação e outras questões menores. É claro que ela deve ser lida como uma obra de 1974, de um autor iniciante, ainda sem muitas leituras, mas cheio de vontade de registrar a fala da sua região. Como disse o filólogo Serafim da Silva Neto, antes de mais nada é necessário registrar os dados. Sem isso, nem será possível estudá-los teoricamente no futuro.

A decisão de publicá-la foi tomada quando fui relê-la para escrever uma comunicação (Falar capelinhense: um dialeto conservador do interior de Minas Gerais), que seria apresentada no Colóquio Internacional: Substandard e Mudança no Português do Brasil, no Ibero-Amerikanisches Institut, Berlim, de 13 a 15 de outubro de 1997. O objetivo dessa comunicação era fazer uma comparação dos meus dados de Capelinha do Chumbo com os do Dialeto Caipira, de Amadeu Amaral, de 1920.

Gostaria de esclarecer que os dados constantes de o Falar Capelinhense foram aproveitados para diversas publicações. Duas delas saíram em capítulos do livro Uma Introdução à Semiótica (Rio de Janeiro: Presença, 1983). Trata-se dos capítulos 3.2.1. “Micro-toponímia” e 3.2.3 “O código antroponímico”. No primeiro, comento os nomes de lugares de Capelinha do Chumbo; no segundo, os nomes próprios, sobretudo os hipocorísticos e os apelidos. Durante o curso de doutorado na Universidade de Colônia, Alemanha, escrevi a monografia The Falar Capelinhense, para um “Hauptseminar” sobre línguas crioulas, ministrado por Annegret Bollée, em 1978. Além disso, escrevi outra monografia sob o título de “Fonologia do falar capelinhense” (Londrina, 1979) que, como a anterior, ficou inédita.

Relacionado ao mesmo tema de O falar Capelinhense, publiquei duas monografias. A primeira é “Sons usados na comunicação homem-animal na região de Major Porto”, em Estudos lingüísticos (GEL) XV. 125-132 (1987), que fora lida como comunicação no XXXIII Seminário Linguístico do GEL, Campinas (SP), 12-13/6/87, sob o título de “Sons usados na comunicação homem-animal numa fazenda de Minas Gerais”. A segunda é “A comunicação homem-animal numa fazenda de Minas Gerais”, em Cadernos de linguagem e sociedade 1,1.40-48 (Brasília: Thesaurus/NELI-CEAM, 1995). Esta última trata da questão da comunicação homem-animal como um todo, ao passo que a primeira se restringe ao aspecto fonético.

Embora não tratem especificamente do falar capelinhense em geral, estão também relacionados com esse tema os seguintes trabalhos: (1) “Algumas tendências fonológicas do português”, comunicação lida no XII Seminário do GEL, Assis (SP), 25-26/11/74, e posteriormente publicada em Estudos linguísticos do GEL XI. 80-88 (1985); (2) “Tonicidade vocabular x padrão silábico ótimo”, comunicação lida na Reunião Anual da SBPC (UnB), 12-18/7/87, inédita. Também inédito é o pequeno ensaio, de 1975, “Uma forma de negação muito frequente, mas nunca tratada nos compêndios”, que trata das duas formas de negação “não” e “num”, que sai aqui como Apêndice II.

No fundo, no fundo, a decisão de publicar O falar Capelinhense foi um retorno meu a Capelinha do Chumbo, vários anos depois, que me revelou que muita coisa registrada em 1974 já estava caindo em desuso. Hoje (2018), com os meios de comunicação muito mais intensificados, o ritmo de desaparecimento dos traços do dialeto caipira se acelerou ainda mais. Portanto, independentemente de teorias, é urgente a publicação do pouco que foi registrado.

Lamentavelmente, em minhas diversas mudanças perdi todas as gravações em fita cassette. Até mesmo as transcrições que fiz delas em 1974 também se perderam. Só ficou uma, que reproduzo como Apêndice I. Ela não constava da monografia original. Como Apêndice III, incluo outro ensaio inédito sobre nomes de animais domésticos urbanos, que pode ser considerado um contraponto aos nomes de animais de Capelinha do Chumbo. 

Os acréscimos e/ou explicações que estou introduzindo agora no texto vêm entre colchetes [].

As notas de rodapé originais são indicadas normal e sequencialmente, imediatamente antes das Referências. As que acrescento agora vêm precedidas de asterisco (*).



 *   *   *



P.S.: Na verdade, esta monografia não saiu em 1997, como dito acima. Ela só está saindo agora, em 2018. Curiosidade: ela foi escrita em uma máquina Olivetti portátil.








PREFÁCIO



Antes de mais nada faz-se necessária uma explicação sobre como foi feita esta pesquisa. Existem muitos métodos para a pesquisa de campo, desenvolvidos pelos pesquisadores da Geografia Linguística e da Dialetologia. Um exemplo pode ser visto em Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil, no capítulo “Do método nas pesquisas dos falares brasileiros”, de Serafim da Silva Neto, edição do Instituto Nacional do Livro, MEC, 1963. No entanto, os que têm trabalhado com a Geografia Linguística têm dado muita importância à palavra isolada; pelo menos é o que parece. Aqui, entretanto, deixei o informante falar à vontade sobre coisas e acontecimentos do lugar, como se pode ver nas falas transcritas. Desta maneira obtém-se uma linguagem natural, usada em seu próprio meio sócio-cultural. Não se força o informante a dar esta ou aquela forma. Ele se expressa naturalmente, em conversa informal. É a linguagem “em situação”, nos termos de Malinowski (Malinowski 1972).

Eu nasci no lugar e vivi nele durante 16 anos. Isso faz com que eu seja familiarizado com a cultura local, o que me ajudou muito no momento da transcrição das gravações. Uma outra vantagem que senti no momento das entrevistas foi que quando as pessoas ficavam sabendo que eu era do lugar ficavam mais à vontade, principalmente quando se lembravam de alguma coisa a respeito da época em que eu e minha família morávamos lá.

O sistema gráfico adotado para transcrever as falas é basicamente o sistema oficial da ortografia do Português. As únicas observações que merecem ser feitas são as seguintes: a) sendo as palavras ou paroxítonas ou oxítonas (sem exceção), o uso do acento gráfico se restringe ao segundo caso, quando terminam em vogal (“casa”, “cantano”; “cantá”, “vendê”, etc.); b) se aparecer acento na penúltima sílaba, ou mesmo em sílabas anteriores, é para indicar a distinção entre som aberto [ò, è] e fechado [o,e] (“révorve”/”revorve”, “cócão”/”cocão”); c) as letras e e o finais representam sempre os vocóides [i] e [u] (“aquele”, “burro”), salvo quando a palavra é oxítona, caso em que as letras vêm com um acento diacrítico (“vendê”, “se ele vié”, “mió”); d) no caso de “que” e “qui”, represeitei-os diferentemente, uma vez que as pronúncias são diferentes.

No final da Introdução transcrevo um diálogo natural, tal qual foi proferido. Em seguida, faço uma “reorganização” dele a fim de torná-lo mais compreensível às pessoas que não estejam familiarizadas com o falar local. Em Apêndice, apresento excertos de falas de pessoas as mais diversas, com a finalidade de dar uma visão mais ampla do falar capelinhense. Transcrevo a fala de um líder político, de um dentista prático, de analfabetos e de pessoas semialfabetizadas. Todos eles nascidos no local. Não me restringi a um único informante a fim de que a amostragem do linguajar local fosse o mais abrangente possível, dentro das limitações naturais deste trabalho. Não senti necessidade de seguir à risca o que recomendam normalmente para a escolha do informante os dialetólogos, uma vez que a finalidade aqui é tentar “demonstrar a covariação sistemática das variações linguística e social...” (Bright 1966).

Desejo agradecer aqui a acolhida amiga que me proporcionou José Gonçalves Arcanjo e sua esposa, Dalva Marques de Sousa Arcanjo, bem como a Jorge Rodrigues. Agradeço também a Agripa Luís da Silva que me serviu de informante horas e horas a fio, agradecimento este extensivo a sua esposa Maria das Graças da Silva. Agradeço ainda a Osmar Mota de Oliveira e a sua esposa Estela Mara de Oliveira (ex-Teixeira). Devo agradecer também à viúva Cecília Juvenute de Jesus e a seus filhos Gaspar Dutra Rodrigues, João Eustáquio dos Santos (Juão Rita), Vicente Lázaro Rodrigues (Cente) e João Eustáquio Rodrigues. Pela acolhida e hospitalidade devo agradecer ainda à senhora Antônia Joana de Miranda, viúva de Leonardo Faustino de Miranda, agradecimento que se estende a seus filhos José Vilácio de Miranda e Nilson Donizete de Miranda, que me acompanharam em longas e enfadonhas jornadas. E, como não poderia deixar de ser, um agradecimento é devido a toda a população de Capelinha do Chumbo.



Londrina, 1974.














0. INTRODUÇÃO



Todos os estudiosos dos problemas de linguagem são unânimes em afirmar que as linguagens regionais, típicas, que revelam às vezes vestígios do português arcaico, tendem a desaparecer, ou, pelo menos, perder muito de seu sabor regional, devido à força niveladora dos modernos meios de comunicação. Pois bem, o que pretendo fazer aqui é registrar, no que me é possível, um espécime destas linguagens do interior do Brasil.

A região em que fiz minhas pesquisas é a antiga Capelinha do Chumbo, cujo nome oficial hoje é Major Porto.

Capelinha do Chumbo, ou Major Porto, está situada no município de Patos de Minas, a chamada “Capital do Milho”, havendo mesmo um livro com este nome (Mello 1971). Patos de Minas é uma cidade mineira sita na região chamada Alto Paranaíba, portanto próxima do Triângulo Mineiro. Capelinha do Chumbo fica quase no ponto extremo leste do município, havendo além dela só o distrito de Bonsucesso de Patos. Segundo dados colhidos no IBGE (seção de Patos de Minas) e no livro Patos de Minas - Plano Diretor Físico (organizado pelo Serviço Federal de Habitação e Urbanismo - SERFHAU e Prefeitura Municipal de Patos de Minas), a localização geográfica de Capelinha do Chumbo é a seguinte: 45° 04’ W. Gr. e 18° 42’, com a altitude de aproximadamente 750m acima do nível do mar. Sua área aproximada é 242,5km2. Para sua população não encontrei dados. Calcula-se que esteja entre 2.000 e 3.000 habitantes. Pela lei municipal nº 747, a delimitação da região é a seguinte:



ZONA URBANA DE MAJOR PORTO: Iniciando a linha divisória na barra do córrego da Batata, no rio Areado, segue pelo córrego acima até a ponte; deste ponto vai em rumo ao rio Areado, num marco colocado a 50 (cincoenta) metros acima do cemitério; depois, pelo rio Areado, até onde teve princípio.



ZONA SUBURBANA DE MAJOR PORTO: Iniciando na margem do rio Areado, num pau de óleo, segue a linha divisória em rumo até o Morro de Pedra, tendo atravessado o córrego da Batata; do Morro de Pedra, passando pelo Mato Seco, vai até a margem do rio Areado, no lugar denominado Varginha; depois, por este rio abaixo, até onde teve ele princípio (Lei de 10 de março de 1964).



Antes de apresentar o que pretendo apresentar, ou melhor, antes de propor a tese em torno da qual o trabalho girará, vejamos algo sobre a história de Capelinha do Chumbo (Major Porto).



MAJOR PORTO - Na antiga freguesia de Morada Nova, havia um arraial de certa importância, o arraial do Chumbo. Em meados do século passado, os moradores do povoado resolveram construir outro arraial, em local mais aprazível, distante cerca de 20 quilômetros. Construíram inicialmente nova capela, dedicada a N. S. das Dores, e levantaram o arraial, que ficou sendo chamado Areado; e, abandonada, ficou a capelinha do Chumbo, tendo desaparecido o primitivo arraial (De um relatório do Vigário da Vara de Dores do Indaiá, pe. Elias José de Barros, datado de 21 de abril de 1885). O local do antigo povoado passou a ser designado por Capelinha do Chumbo. Aos poucos, porém, com o correr dos anos, foi-se formando novo povoado, muito lentamente, já no município de Patos de Minas, [que] foi elevado a distrito, pela lei nº 2.764, de 30 de dezembro de 1962, com a denominação de Major Porto. É distrito de Patos de Minas (Barbosa 1971).



Capelinha do Chumbo é fim de linha, isto é, a estrada que a liga a Patos de Minas termina nela, o que faz com que não seja cruzada por forasteiros. Seu contato com locais mais “adiantados” é quase exclusivamente com Patos de Minas. Quando não, trata-se de filhos do lugar que vão estudar em Belo Horizonte (ou mesmo em outros centros, como Uberaba, São Paulo, etc.). Não sendo lugar turístico, não recebe muita visita de gente de fora. Afora isso, seu contato com um tipo de vida diferente do seu é mais pelo rádio (ouvem-se mais os programas de São Paulo). As atividades típicas são a criação de gado, de porcos, etc., e a lavoura. Mas tudo de maneira ainda muito rudimentar, e quase só para a subsistência. Dificilmente se produz para vender para fora. Na sede do distrito, “no comércio” (“na rua” ou “na praça”), exerce-se um comércio pobre, com umas duas lojas de tecidos, umas três ou quatro “vendas” (bares), uma farmácia e uma loja que vende produtos manufaturados (“A Lojinha”), bem como uma máquina beneficiadora de arroz. Não há energia elétrica, portanto não há seus derivados. Curiosamente há telefones! Há, enfim, um grupo escolar, que funciona já há bastante tempo, e um ginásio desde 1968.

Quanto a divertimentos e vida social não difere muito de outras regiões do interior do Brasil. Na parte folclórica, no entanto, não é das mais ricas, restringindo-se mais às crianças e adolescentes, se é que se pode chamar de manifestações folclóricas brincadeiras como “Nego Fugido”, “Passá Anel”, “Direito dos Tavar” (Tavares é o nome de um povoado vizinho), brincadeiras de roda e outras. No plano dos adultos, creio que a manifestação mais marcante seja a “Folia de Reis” e os festejos de São João, que tampouco são exclusivos do local. No mais, trata-se, em geral, de tradições em torno da Igreja, pertencendo, portanto, ao folclore cristão, quase universal (cf., por, exemplo, Salum 1953).

Não há muita diferenciação social entre os habitantes da zona rural e os da urbana. Isso devido ao fato de todos os habitantes desta serem também oriundos do meio rural, “da roça”. Diferenciação social quase não há também dentro da zona urbana: praticamente não há níveis diastráticos. Toda a comunidade forma um bloco homogêneo, quase um clã, ou uma família única: todo mundo conhece todo mundo. [O pouco de diferença que há é de nível econômico].

Sendo uma sociedade que quase não usa a linguagem escrita, estaria mais próxima do nível das sociedades primitivas, sobre as quais Claude Lévi-Strauss diz, de passagem embora: “O domínio da antropologia, diz-se de bom grado (...), consiste nas sociedades não civilizadas, sem escrita, pré ou não mecânicas. Mas todos estes qualificativos dissimulam uma realidade positiva: estas sociedades estão fundadas em relações pessoais, em ligações concretas entre indivíduos, num grau muito mais importante que as outras” (Lévi-Strauss 1970: 390). Com exceção do “não civilizadas”, creio que o que ele disse se aplica muito bem à comunidade capelinhense. Assim sendo, a zona urbana não apresenta denominações em seus logradouros, ruas etc. Com exceção do bairro Catiara e o das Batatas (devido ao fato de estar às margens do córrego deste nome), nenhuma localidade tem nome. Uma vez que as “ligações concretas entre os indivíduos” são muito marcantes, já que a comunidade forma um bloco, as referências a locais se fazem pelo nome dos moradores. Alguém mora além ou aquém de fulano, perto do bar de beltrano, e assim por diante. O “Dodô” mora perto do “cimintéro”, o “Chiquéte” mora “prá cá” do “Grupo”, o “Zé Professor” mora perto do “Jorge da Lojinha” etc. Os telegramas e cartas vêm endereçados assim:



Divino do Zé Agustim

38.710 Major Porto-MG.



A vida econômica, como não poderia deixar de ser, também é bastante simples. Poder-se-ia dizer que é quase toda na base de troca, pelo menos o é em larga escala. O dinheiro não tem muita corrência (se se pode dizer assim). Alguém tem um frango e precisa de certa quantia de arroz, então procura outrem com quem possa catirá-lo. O dinheiro surge, e é necessário [para os capelinhenses], só quando têm que comprar algo na venda ou na loja (=loja de tecidos). Nem pão compram, pois fazem bolos, pães-de-queijo em casa; às vezes o próprio queijo serve para se tomar com café. Esse relacionamento direto, sem intermediário do dinheiro, é tão marcante que há até algumas expressões típicas para designá-lo:



Vamo catirá os cavalo? (“catirá” = trocar)

ou

Vamo breganhá os boi? (breganhá” = barganhar)



Quando alguém promete ir trabalhar para outra pessoa e não vai, diz-se que “bateu a pedra”. Se uma pessoa “catira” alguma coisa com outra e “passa a manta nela” (sai levando a melhor), aquela pode “ingulí a lobêra” (voltar atrás). Tudo isso já nos permite vislumbrar uma unidade linguística e cultural da comunidade.

Sendo o relacionamento social de indivíduo a indivíduo muito intenso e a comunidade quase autossuficiente (com pouco contato com outras comunidades), a sua linguagem é predominantemente falada. Mesmo sem contar o grande número de pessoas analfabetas ou semialfabetizadas, o uso da linguagem escrita é um caso excepcional. Quando compram fiado na venda ou na loja o dono debita na conta. E assim debitá” passou a significar escrever, pois esta é a única forma de escrita que entra em sua experiência linguística diária. Quando não, dizem assentá”. Várias pessoas ao me verem anotando alguma coisa me perguntavam o que estava debitano, outros indagavam o que eu estava assentano.

O que disse no final do parágrafo anterior já deixa vislumbrar algumas características da linguagem capelinhense: altamente telúrica, bastante ligada à experiência com o meio físico e social. Isto permite entrever outra característica da linguagem local: um acentuado pragmatismo no uso da linguagem, que se pode ver no caráter em geral taciturno das pessoas. É claro que há os mais tagarelas (letéques), os contadores de “casos” (lá não se diz “causo”), mas mesmo neste caso o uso da linguagem é telúrico e pragmático.

Poder-se-ia argumentar que tudo isso são truísmos, que tudo o que disse sobre o falar capelinhense aplica-se à linguagem de qualquer comunidade! Vejamos o que diz a respeito de um desses tópicos Claude Lévi-Straus: “... falamos continuadamente, qualquer pretexto nos serve para nos expressarmos, interrogarmos, comentarmos.... Esta maneira de abusar da linguagem não é universal; nem é mesmo frequente. A maior parte das culturas a que chamamos primitivas usa da linguagem com parcimônia...” (Lévi-Strauss 1970: 85). É claro que no caso presente isto não se aplica com tanta força, mas exemplifica uma tendência.

Talvez valesse a pena recapitularmos com o mesmo autor as relações existentes entre a linguagem e a cultura, antes de prosseguir. De acordo com ele “pode-se, inicialmente, tratar a linguagem como um produto da cultura: uma língua, em uso numa sociedade, reflete a cultura geral da população. Mas num outro sentido, a linguagem é uma parte da cultura; constitui um de seus elementos, dentre outros”. Mais adiante acrescenta: “...pode-se também tratar a linguagem como condição da cultura .... visto que é sobretudo através da linguagem que o indivíduo adquire a cultura de seu grupo.....” (Lévi-Strauss 1970: 85). J. Mattoso Câmara Jr. faz uma síntese muito boa da relação linguagem-cultura:



1. A língua é parte da cultura; 2. É, porém, parte autônoma, que se opõe ao resto da cultura; 3. Explica-se até certo ponto pela cultura e até certo ponto explica a cultura; 4. Tem, não obstante, uma individualidade própria, que deve ser estudada em si; 5. Apresenta um progresso que é o seu reajustamento incessante com a cultura; 6. É uma estrutura cultural modelo, que nos permite ver a estrutura menos nítida, imanente em outros aspectos da cultura (Câmara 1972: 273).



Sendo, como vimos, o relacionamento língua-cultura tão íntimo, é claro que a língua deve refletir aspectos da cultura, como atitudes, tipo de vida, costumes etc.

Este estudo é, portanto, uma tentativa de visão sociolinguística da comunidade de Capelinha do Chumbo.

Afirma-se frequentemente que o objeto da Sociolinguística é “descobrir a covariação sistemática entre a estrutura linguística e os fatos sociais que motivaram as variações do sistema linguístico” (Vandresen 1973: 6). William Bright, um dos mais importantes sociolinguistas, diz que “the sociolinguit’s task is to show the systematic covariance of linguistic structure and social structure - and perhaps even to show a causal relationship in one direction or the other” (Bright 1966).

Com os dados apresentados acima, minha intenção foi simplesmente dar uma imagem, ainda que muito pálida, das condições de vida de Capelinha do Chumbo a fim de relacioná-la com sua linguagem. Assim sendo, o que pretendo fazer é tentar mostrar que aquela simplicidade de condições de vida, aquele telurismo e pragmatismo linguísticos delas decorrentes, enfim, que aquela coesão social que faz da comunidade um único bloco, uma única família, reflete-se na linguagem, está em sintonia com ela. O fato já mencionado de que não há nomes para logradouros públicos e para os acidentes geográficos urbanos é revelador. Não há necessidade de se porem nomes nas ruas nem, consequentemente, número nas casas porque todo mundo conhece todo mundo. Como disse Edward Sapir, “a mera existência, por exemplo, de uma espécie animal no ambiente físico de um povo não basta para fazer surgir um símbolo linguístico correspondente. É preciso que o animal seja conhecido pelos membros do grupo em geral e que eles tenham nele algum interesse (grifo meu [- HHC]), por mínimo que seja” (Sapir 1969: 45). Onde Sapir disse “animal”, entenda-se “acidente” e/ou “logradouro”. Isto é, no caso presente não houve necessidade e, consequentemente não houve interesse em nomear os aspectos do ambiente mencionados. Os logradouros de Capelinha do Chumbo estão intimamente associados às pessoas e são referidos por referência a elas.

Tentarei mostrar este reflexo da cultura na língua, ou, dito de outro modo mais técnico, tentarei mostrar esta covariação entre língua e cultura nos diversos aspectos sob os quais a língua pode ser estudada, tomando-se o termo “variação” não no sentido de genético, evolutivo ou diacrônico, mas como diz o já citado William Bright, no de que “such variation or diversity is not in fact ‘free’, but is correlated with systematic social differences”. Assim, tentarei fazer ver que as características sociais, ou culturais, estão correlacionadas com características linguísticas, tão marcantes quanto aquelas. Eis os níveis da linguagem de que tratarei:



1. Sintagmática: combinação de elementos no enunciado.

1.1. Sintaxe: combinação de palavras

1.2. Morfologia: combinação de elementos de palavras entre si (radicais, afixos, desinências, etc.).

2. Léxico.

2.1. Onomástica: estudo dos nomes próprios.

2.1.1. Antroponímia: estudo dos nomes de pessoas

2.1.2. Toponímia: estudos dos nomes de lugares

2.1.3. Zoonímia: estudo dos nomes de animais

3. Fraseologia: estudo de expressões cristalizadas

4. Fonologia: estudo do significante fônico

4. Fonologia segmental

4.1. Consoantes

4.2. Vogais

4.3. Semivogais

4.4. Estruturas silábicas

4.5. Prosódia

5. Conclusão.



Transcrevamos um diálogo espontâneo travado entre um de meus acompanhantes durante a pesquisa, o Zé Professor, e outro habitante do lugar, Rémundo Ferrera. Este último não sabia que a gravação estava sendo feita. Só posteriormente é que ele foi cientificado do fato e não opôs nenhum obstáculo a que se mantivesse a gravação. Como se pode ver, o diálogo está todo fragmentado, apresentando interrupções, hesitações, redundâncias próprias de uma conversa ao natural, isto é, da “linguagem em situação”. Como se verá depois, todos esses “defeitos” são explicáveis pelo “contexto da situação” (Malinovski 1972) em que o diálogo se deu.

Para maior facilidade de compreensão para quem não presenciou o diálogo ou não tem um conhecimento mais profundo dos costumes de Capelinha do Chumbo, após a transcrição fiel (na medida do que é possível reproduzir um texto de uma conversa vários dias depois da data em que ela se deu) do texto, apresento uma reelaboração que, creio, não trai o assunto da conversa.



Diálogo entre Zé Professor e Remundo Ferrera

- Começo ininteligível

1. ZP - Então, ach’ qu’ sinhor mora lá pert’ daquele... Tuninh’ Calisto?

RF - Tunim Calisto? Ih, é muito longe! Tunim tá lá ... im cima!

ZP - Lá pu lado do Chapadão, né?

RF - É! Não, el tá é... tá qui, entre o Muinh...

ZP - O Cedro, né?

RF - É, o Cedro. Tá lá no Cedro, lá na frente...

Terceiro - O Chapadão..... (ininteligível)...

8. RF - Pu Óstaqu’ aqui é mais face purquê es transita ali... , lá no Tunim Calisto, né? Es vem

munto no Juaquim do Zé Calist’ ali .... É mais face eu inviá um récado dali.

ZP - Es tev’ aí perguntano, mas eu num sabia!

RF - É?

ZP - Ontem queu fiquei sabeno

RF - É? Antão é bão, ô Zé... vim?

ZP - Uai, isso é vantage pu sinhor.

RF - É?

ZP - Traz o atéstado do quarto ano...

RF - É?

ZP - E ... e o rigistro.

18.RF - E o rigist’ ... de nascimento? Agora as minina - aquela.... a Eni e o ...., Zé, e o ... e a

- aquela do cumpá’a Luís - pirguntô s’eu vinha cá hoje. Falei: “Ah, vô!” A Eni falô: “Ó, sinhor pricura lá o Zé, papai ..... - aquel’ negóc’ do diploma dela -

ZP - Tá lá im casa.

20.RF - Tá! Antão a hora qu’eu saí, semp’ dá u)as volta aí, mais tarde ... eu indá vô demorá aí,

isperá vê s’o carr’ chega e....e antão na hora de saí nóis passa lá, né? ... Se eu .... o daqué’a minina do cumpá’a num tá lá não?

ZP - Tá. Se eu num ‘tivé lá o sinhor pega com a Dalva

RF - É? Pode pidí sua muié, né?

ZP - É.

RF - Sei. Não, mais o cert é qui cê tá, né? Dipois nóis tromba aí, viu?

ZP - Agora, se o negoc do minino, o sinhor resolve lá, né?

RF - Sei. Sigunda....?

ZP - Sigunda agora.

28.RF - Cê acha, Zé, qui...., eu tô achano assim qui esses caminh’ aí tá muito rúim, mod’ eles

... só se... pa vim só ele pr’ aqui, fica assim mei’ difice, cê acha qui num... num é importância levá já no.... direto? Purquê ele é mei’ assim... mei’ assim... distraíd’ eu agora... assim; intão eu ta’a pensano .... pensano qui levam’ as minina tudo lá pus Pato, cê sabe! Mais aí eu pensei: “Ah, isso fica muit’ pesado pra mim. Fica um muncado lá e ela... chega essa qui é mais véi’, fica aí pa i tintian’ es”, cê sabe! Es fica um muncado aqui e vai duas pra lá, né? Até a gente ajeitá....

ZP - De qualquer maneira tem u)a provinha!

RF - Tem?

ZP - Tem!

RF - Sei!

ZP - De qualquer manera tem uma provinha.

RF - Tem? Agora el pod dexá aques minino fazê a prova assim...

ZP - Se... (ininteligível)... pode!

RF - Pode?

ZP - Pode.

39.RF - Não, antão é capá’ ... então s’ele ... s’ele ... quand’ ele, - ó Déc’ - quand’ ... s’ele incontrá, né? Purquê aí fica mais face.

Terceiro - (ininteligível)....

41.RF - É! ... É. Mais aí ele, oceis já vai, é um dia, e a gente vai... vem u)a minina cum ele...

vai... e acho mió que s’ele ficá aqui eu fico pensano assim.... qui ele fica aqui, ele dana brincá com essa mininadinh’ aqui (tem aquele fio do Tõezim ali, ó!) e ele ... né?, Zé!

ZP - É.

43. RF - E ele sozim aí, ele num fais nada. ...’quê o ano passado já ... cê inda me falô: “Trais

ele!”, eu falei: “Ah, eu vô dexá mais, ‘quê meno ele panha mais um.. “né?”, mais u)a idá’ ... mais um ano de idáde, por exempo,.... já pensa mais”, ele, ele é... ele é muito, até assim na leitura num dá trabai’ não, mai p’ocê .... assim pa, el’ num....

44.ZP - (ininiteligível)

45.RF - É! Tá ‘í is ... contan ele, isprican ele cum é qui é aquilo e ele fica assim distraído, né?

Aquel’ trem isquisito! Num... ah... tre.... atualmente os minino tudo, quas’ tudo são assim, né? Mais uns men’ pensa istudá, né?

P - É!

RF - Não, pois então nóis vamo... nóis vamo fazê assim... mais na véspa da prova aqui ocê me av..., ocê me conta, viu?

ZO - Tá!

.......................................................................................



Reelaboração do diálogo

Vou explicar só as partes mais complexas, com muitas intercalações, ou então que necessitam de um conhecimento da situação em que o diálogo se deu.



A fala nº 8 de RF é o seguinte:



“Para o Eustáquio aqui é mais fácil (estudar aqui em Capelinha do Chumbo e não em Patos de Minas) porque eles vão freqüentemente à casa do Toninho Calisto, à do José Calisto... Portanto é mais fácil para eu enviar um recado” (Toninho Calisto mora perto de RF).



A de nº 18:



“(Traz o atestado do quarto ano...) e o registro de nascimento. Está bem. Mas, as meninas (a Eni e a do compadre Luís) me perguntaram se eu vinha aqui (Capelinha do Chumbo) hoje. Eu lhes disse que vinha e a Eni me pediu que perguntasse a você pelo diploma dela”.



Fala de nº 20:



“Está bem. Eu ainda vou dar umas voltas, vou ficar até a hora de o ônibus (de Patos de Minas) chegar. Quando formos embora passaremos em sua casa porque você disse que o diploma da filha do compadre Luís está lá”.



Fala nº 28:



“Como esses caminhos (entre minha casa e Capelinha do Chumbo) estão muito ruins, fica muito difícil para ele vir sozinho. Eu estava pensando em levar todos eles para Patos, o que você acha? “Mas”, pensei, “isso fica muito pesado para mim, assim sendo ficam alguns lá, como a mais velha, e outros ficam aqui para ir equilibrando a situação. Um pouco aqui e duas lá”.



Fala nº 39:



“Não, então, ó Décio, se ele encontrar.... fica mais fácil”.



Fala nº 41:

“É melhor vir uma menina com ele porque se ele ficar aqui, penso, ficará brincando com essa meninadinha daqui, como por exemplo, com aquele filho do Tõezinho, e assim não fará nada”.



Fala nº 43:



“Ele sozinho aí não fará nada. O ano passado você me falou para trazê-lo, mas eu esperei ele ficar um pouco mais velho, porque assim já pensa um pouco mais. Mas ele, que na leitura até que não dá trabalho, é um tanto.....”



Fala nº 45:



“... distraído. Às vezes você está explicando alguma coisa para ele e ele nem presta atenção. Atualmente os meninos todos são assim, não é? Mas alguns pelo menos pensam em estudar”. 








1. SINTAGMÁTICA



1.0. Introdução

Tomarei o termo sintagmática para designar o estudo de signos copresentes em um enunciado, e as relações existentes entre eles. Portanto, está bem próximo da Sintaxe, mas não é só Sintaxe. Observando um enunciado como “Lá im casa tem frang’ sorto”, veremos que todas as palavras se relacionam entre si: o objeto da Sintaxe é o estudo do relacionamento das palavras de um enunciado. Mas, em um elemento de enunciado, como “chamano”, podemos notar o relacionamento de três partes de palavra entre si: “cham-”, “-a-” e “-no”. Estes elementos são morfemas, partes de palavras. Como este tipo de estudo vem sendo implicitamente chamado de Morfologia, não vejo porque não continuar a usar o termo para designá-lo.

Em síntese, para as finalidades deste trabalho, Sintagmática será o estudo do enunciado como:



a) um conjunto de palavras (no enunciado como um todo);

b) um conjunto de morfemas (dentro da palavra).



No primeiro caso temos o objeto da Sintaxe, no segundo, o objeto da Morfologia. Isto é, Sintaxe será entendida como o estudo das relações entre palavras e Morfologia será entendida como o estudo das relações entre os morfemas ou, dizendo de outra maneira, será entendida como o estudo das relações entre os elementos de palavras, portanto, flexões e afixação, no caso do Português.

Após este estudo dos elementos do Sintagma, estabelecemos classes de elementos que têm algo em comum, ou que são comutáveis na mesma posição, e estabelecemos paradigmas, objeto da Paradigmática (Saussure 1971: 170-175, 185-188).

Na Sintaxe examinarei problemas como concordância, regência, colocação (ou ordem das palavras), a estruturação da frase, interrupções de enunciados, etc. Tentarei mostrar que todos estes itens se organizam de modo a servir a uma maior simplicidade, uma maior facilidade de comunicação em situação marcada, além de se explicarem por ela.

Talvez fosse conveniente esclarecer que a divisão da Sintagmática em Sintaxe e Morfologia está no nível da norma de que fala Eugênio Coseriu, pois no nível do sistema, também de Coseriu, só se pode falar em Sintagmática, pois trata-se de um nível mais alto de abstração. Neste nível só se considera o relacionamento de signos copresentes em um sintagma (Sintagmática) e entre signos que podem aparecer no mesmo lugar do sintagma por terem algo em comum pelo significante, pelo significado, pelos dois ao mesmo tempo ou pela distribuição, constituindo classes ou paradigmas (Paradigmática). Só no nível inferior de abstração (norma) é que se considerarão os elementos não mais como signos mínimos (morfemas), mas como palavra e é neste nível que surge o objeto de estudo da Sintaxe e da Morfologia (Coseriu 1967: 11-113). De um ponto de vista estritamente teórico, sem vistas à aplicação a esta ou àquela língua, poder-se-ia fazer uma análise de uma língua como um conjunto de morfemas, sem levar em conta a divisão em palavras. Mas, para o caso do Português e das línguas europeias de um modo geral, deve-se considerar a palavra, é possível, útil e necessário um estudo tendo-a como unidade.



1.1. Sintaxe

Transcrevamos alguns enunciados e analisemo-los. Há muitas dificuldades, pois há muitas interrupções, trechos incompreensíveis para uma análise a posteriori. No cômputo geral, no entanto, pode-se depreender a estrutura frasal da linguagem capelinhense através deles.

Alguns dos enunciados transcritos foram tirados do diálogo apresentado na Introdução. Outros constam de outros diálogos, alguns gravados secretamente, outros com o conhecimento dos interlocutores.



1. “Tunim tá lá... im cima”

2. “Pu Óstaqu’ aqui é mais face purque es transita ali... no Tunim Calisto, né?”

3. “Es vem munto no Juaquim do Zé Calist’ ali.....”

4. “Agora, as minina -- aquela... a Eni e o, Zé, e o ... e a -- aquela do cumpá’a Luís -- pirguntô s’eu vinha cá hoje. Falei: ‘Ah, vô!’ A Eni Falô: Ó, sinhor pricura lá com o Zé, papai ... --- aquel’ negóc’ do diploma dela -- “

5. “Nóis istudô ... foi aqui na Capilinha mezmo. u)a hora era ali naque’a casa do Juca Boa, teve uns dia qui foi na... nu)a casa cumprida qui tinha aqui”

6. “Ah, nem lembr’ direit’ não! E’a Ozona...”

7. “Teve uns tempo... lá na iscola dum tal Montero, num sei se seu pai teve não, num lemb’ não!”

8. “Ah, é mesmo, sô! Maria Rosa, é!”

9. “Uai! Num sei que qui não! ... ‘sê biscoit’ e doce, né?”

10. “Num sei s’é fulia tamém, ele convidô nóis pa í lá na casa dele ajudá rézá um terço, num ispricô de quê nem coisa ninhuma, né?”

11. “Não, mais aí se ele fô... cê tem qui fazê ota condução pr’ocê, purque o carr’ dele ...... só pra nóis ind’ é poco!”

12. “Nasci foi aqui!”

13. “... não, o cumpad’ Zé.... --- a gente ia pa roça, se tivesse de sole quente ele chamava pa nóis i ... pa casa dele pa nóis réfrescá do sole...; e se tivesse de chuva.... e pur lá nóis ficava o dia tamém. Num vortava”.

14. “Quando num tomava, dava era u)a dor de cabeça qui Deus me live!”

15. “Ô morto, ô atirado... ô...., né?”

16. “Trabai’ de... de capiná”

17. “Mais... naquela épuca, Agusto Varejão tava fazeno o Tiro -- ele e o Déro Amaro --, então viero aqui de passeio, nós munto amigo, fom’ criado junto aí! Ez: ‘Vam’ fazê u)as prisão aí!? -- Vamo!”, mulécage, cachaça! E descero aí, prendemo o.... o Zé Timóte”.



1.1.1. Período

Vejamos primeiramente a estrutura dos períodos. Tomarei o termo período para designar um enunciado completo que termina por uma pausa bem marcada.

Frequentemente há intercalação de um período dentro de outro, como mostram os enunciados nº 4 e 17. No de nº 4 temos mesmo um pequeno diálogo dentro de um período. Seria o processo sintático a que os construturalistas chamam subordinação, constituindo o que chamam de récita, isto é, “uma subordinação semântica de cláusula aglomerada a período” (Back & Mattos 1972: 38, 502 e passim). O de nº 17 apresenta, além da subordinação de cláusula aglomerada a período, várias orações subordinadas a outras orações, além do fato de se iniciar por um conetivo. Analisando a estrutura destes períodos veremos que são muito complexos, não há uma conexão fonossêmica (de significante e de significado) (Couto 1974). A ligação entre as partes constituintes dos períodos se faz semanticamente apenas, sem uma palavra (no sentido popular do termo) para expressá-la. Vejamos, por exemplo, o período nº 4: “Agora, as minina ....... dela”. Sem contar o problema das hesitações, das interrupções e das correções, o que ligaria, por exemplo, a oracão a) “as minina, a Eni e a do cumpá’a Luís, pirguntô (s’eu vinha cá)”, b) “falei: (Ah, vô!)”, c) “A Eni falô: ó sinhor pricura lá o Zé...)”, d) “aquel’ negóc’ do diploma dela”? Só pode ser a entoação, mas isto [a decodificação do enunciado] só se tornou possível devido ao contexto da situação de que nos fala o antropólogo Bronislaw Malinovski (Malinowski 1972: 295-330).

Em outros termos, a comunicação só se efetuou devido ao fato de os interlocutores pertencerem ao mesmo contexto cultural em que o diálogo se deu. O fato de o enunciado estar aqui transcrito, isto é, desligado do contexto ou do texto a que pertence (ao diálogo como um todo) não contradiz o que afirmei. Tanto assim que se pode ler o texto completo transcrito na Introdução e se verá que não ajudará muito. Isto é, a compreensão só se efetuou devido ao pragmatismo linguístico, devido ao telurismo que me proponho mostrar. Sem a vivência prévia da situação (no sentido de Malinowski) o contexto linguístico de quase nada nos valeria. Só se descobrirá a conexão entre as orações se se apresentar a situação em que o diálogo foi proferido. Para tanto, remeto ao resumo ou reelaboração que apresento logo após a transcrição do texto original. Na medida do que me foi possível transcrever da fita magnética, o texto é tal qual foi proferido.

Poderíamos aumentar os exemplos, fazendo uma longa lista de casos como estes e de outros diferentes na aparência, mas de mesma natureza, isto é, que surgiram [e foram entendidos] devido à experiência prévia da situação em que o diálogo se deu. Por exemplo, examinemos o enunciado de nº 17 que, aliás, pertence a um senhor de 70 anos, semianalfabeto, mas muito lúcido e o maior contador de “casos” de Capelinha do Chumbo, o senhor Antônio Paulista (Antõe Polista ou Tõe Polista): “Mais.... naquela épuca, Agusto Varejão tava fazeno o Tiro – ele e o Déro Amaro –,  então viero aqui de passeio, nóis munto amigo, fom’ criado junto aí... Ez: ‘Vam’ fazê un-as [“u” nasal seguido de “as”] prisão aí? - Vamo! -- Mulecage, cachaça! E descero aí, prendemo o ... o Zé Timóte”. De “Mais” até “Tiro” temos uma oração; o sujeito é repetido em forma de substituto em “ele e o Déro Amaro”, que vão constituir o sujeito da oração seguinte, “então viero aqui de passeio”, cuja ligação com “nóis, munto amigo, fom’ criado junto aí” não está explícita. O mesmo pode-se dizer da conexão entre “Ez: -Vam’ fazê un-as prisão aí?” e o que precede, que, como já disse, constitui um pequeno diálogo dentro de um período. E assim por diante. Poder-se-ia dizer que aqui (no nº 17) têm-se vários períodos e não um só. Recordemos, então, o que se entende por “período”: é um enunciado completo que termina por pausa bem marcada. Pois bem, pausa bem marcada só existe depois de “Zé Timóte”. Aliás, diga-se de passagem que uma contestação a este critério (identificar unidades sintáticas pela prosódia) só seria feita por aqueles que ainda não perceberam que a língua é primeiramente falada e só em segundo lugar escrita. Não devemos nos deixar levar pelos sinais gráficos que podem ser muitas vezes arbitrários. O enunciado foi emitido com um só movimento de prolação, terminando onde já indiquei. De um ponto de vista ideal, desligado da situação concreta em que o diálogo se deu, de fato, a divisão em orações e em sintagmas nominais, sintagmas verbais e sintagmas circunstanciais segundo a terminologia de Bernard Pottier (Pottier, 1969, 13-15) seria diferente. De “Mais” até “Tiro” teríamos um período (pausa), marcado na escrita por ponto final; de “nós” até “aí” teríamos outro período composto de duas orações ou um período simples, dependendo do tratamento que se desse à sequência de palavras “nós, muito amigo” (“nós era munto amigo” ou “nós, munto amigo”, como está no original). E assim por diante, não é necessário continuar. No entanto o diálogo se deu em uma situação concreta, o informante se prontificara em me contar uma série de “histórias” acontecidas em Capelinha do Chumbo.

Assim vimos que só o contexto da situação, portanto, um caso de linguagem intimamente ligada ao ambiente cultural em que é falada, pôde explicar a estrutura de alguns períodos que de outra forma ficariam inteiramente incompreensíveis, principalmente o de nº 4. O de nº 17 é mais compreensível, mas mesmo ele apresenta trechos em que só o entendimento através do contexto sociocultural pôde explicar. Dentre estes casos, destaque-se o das conexões entre as orações ou entre estas e palavras que, como vimos, de outro modo não se explicariam.



1.1.2. Oração

Passemos ao item seguinte da Sintaxe, o da estrutura oracional. Tomemos o enunciado de nº 13:



“... não, o cumpad’ Zé...., a gente ia pa roça, se tivesse de sole quente ele chamava pa nóis i.... p’a casa dele pa nóis refrescá do sole..... e se tivesse de chuva..... e pur lá nóis ficava o dia tamém. Nur vortava”.



Esse enunciado apresenta dois períodos ligados entre si pela ordem, isto é, pela sequência de um após o outro, e também pela entoação. Mas, além destes interstantes (Couto 1972: 3-6) temos ainda uma conexão estabelecida pela concordância de pessoa. De fato, o predicado da oração absoluta (na terminologia gramatical brasileira) “vortava” tem como sujeito o mesmo [sujeito] de “i” (ir), “refrescá” e “ficava”. Só isto (o fato de terem o mesmo sujeito) seria bastante para estabelecer uma conexão semântica entre os dois períodos. E a conexão fonológica, no plano da expressão, está estabelecida pelos interstantes ordem e entoação. Assim tem-se uma conexão fonossêmica entre eles, isto é, uma conexão no plano do significado e no plano do significante. Mas, os gramáticos ainda não quiseram ver um fato tão óbvio. Passemos às orações.

Tomemos o primeiro período e partamos do pressuposto de que um período conterá tantas orações quantos forem os verbos nele existentes. Ele tem sete verbos: “ia”, “tivesse”, “chamava”, “í”, “refrescá”, “tivesse” e “ficava”, portanto, deverá conter sete orações. Podemos, realmente, distinguir as sete, mas temos que explicar alguns fenômenos, alguns “anacolutos” e quejandos a fim de chegarmos ao núcleo, à “estrutura profunda” (Chomsky 1972: 44 ss.). Feito isto, identificamos as seguintes orações:



1. “a gente ia pa roça”

2. “se tivesse de sole quente”

3. “ele chamava”

4. “pa nóis í pa casa dele”

5. “pa nóis refrescá do sole”

6. “se tivesse de chuva’

7. “pur lá nóis ficava o dia tamém”



Do ponto de vista da ordem dos diversos elementos que compõem uma oração (sujeito + verbo + complemento) não há nada de especial. A estrutura é potencialmente a mesma do Português Literário (digo “Literário” no sentido de altamente formal). Ainda aqui, o que haveria para comentar em primeiro lugar seria a estrutura periodal. Mas mesmo a respeito da oração há fatos dignos de nota.

Tomemos a oração nº 3: “ele chamava”. Não levando em conta o fato de “chamá” estar sendo usado intransitivamente, devido ao uso do pronome-sujeito que vem logo após ele e que semanticamente é seu objeto, há o problema do “ele”. Sua existência pressupõe a de um antecedente. Assim temos explicado o “anacoluto” que aparece logo no início. Não existe termo desligado num enunciado “aceitável” (Chomsky 1971: 13) para o falante e principalmente para o ouvinte. No caso, a função do elemento que para as gramáticas tradicionais seria um “anacoluto” é ser um antecedente para “ele” da oração nº 3. Talvez o fato mais marcante, no plano oracional, seja o que se verifica na oração de nº 6, “se tivesse de chuva...”, que estaria incompleta. É uma oração subordinada cuja principal, ao que tudo indica, não aparece. Acontece que ela está suprida pela pausa, pela entoação e, o que talvez seja mais importante, pelo perfeito paralelismo existente entre principais e subordinadas no período como um todo. De fato, podemos estabelecer uma proporção que explicita esta simetria. Deixando implícito “o cumpad’ Zé, ... a gente ia pa roça”, temos (cada bloco - I, II, III - devem ser lidos na vertical, nessa ordem):



I                                  II                                 III

se tivesse de sole quente              se tivesse de chuva            e por lá nóis ficava”

ele chamava pa nóis i pa             idem

casa dele pa nóis refres-              idem                                    

cá do sole                                    idem



Quer dizer, o paralelismo que nos permite uma formalização como a acima feita deixa patente que depois de “e se tivesse de chuva” só pode vir a mesma sequência que é a principal de “se tivesse de sole quente”. Não se trata de oração elítica. Como já tentei mostrar em outro lugar (Couto 1972a), não existe elipse. Sempre que um falante emite uma mensagem e esta é compreendida pelo ouvinte, nada estará faltando. Pode-se mostrar o fato reorganizando o enunciado, como propus no trabalho acima:



         a                         b                     c      

Não, o cumpad’ Zé, .... a gente ia pa roça, se tivesse de sole quente,

                                              c’                                                                                                                               

                         d’                             

ele chamava pa nóis í.... pa cada dele pa nóis refrescá do sole...

                                                                 d”    

              d                                      c”                             

se tivesse de chuva......., e pur lá nóis ficava o dia   tamém



Lendo o enunciado na “ordem direta”, reorganizando-o, temos o seguinte (em que M é mensagem):



M = a + b + c + c’ + c” + d + d’ + d”

Isto é:



a = “Não o cumpad’ Zé”

b = “ a gente ia pa roça”

c = “se tivesse de sole quente”

c’ = “ele chamava pa nóis í... pa casa dele pa nóis refrescá do sole”

c” = “e pur lá nóis ficava o dia”

d = “se tivesse de chuva”

d’ = “ele chamava pa nóis í pa casa dele”

d” = “e pur lá nóis ficava o dia tamém”



Portanto, nada há de monstruoso naquele enunciado. Ele transmitiu uma mensagem num contexto cultural tão bem quanto o faria o mais “escorreito” (desculpem-me o termo) dos enunciados. A propósito da “pressão estrutural” na interpretação de sequências de elementos linguísticos de interpretação duvidosa, valeria a pena ver o que diz Kenneth L. Pike (Pike 1971: 128-1149), embora com referência só ao plano fônico. E “pressão estrutural” é o que nos permitiu interpretar as supostas sequências duvidosas do enunciado capelinhense supra.

Tudo que apresentei para explicitar a estrutura das orações componentes do enunciado 13 refere-se mais à contextura, ao contexto do enunciado. Mas, como qualquer enunciado, além de ter um contexto interno, está associado a uma situação, sua estrutura (principalmente a semântica e sintática) se explica também e talvez principalmente por ela. Assim, devido ao conhecimento prévio que havia (tanto da parte do falante, como da parte do ouvinte) a respeito do fato narrado bastaria um termo “isolado” aqui, outro “isolado” ali e teríamos a mensagem captada pelo receptor. Outra vez temos o pragmatismo, o telurismo linguístico, a profunda imbricação entre língua e cultura explicando uma aparente deformação estrutural, ou uma aparente pobreza expressiva do emissor. Língua e cultura, ou mais especificamente, língua (ou diálogo) e situação estão totalmente envolvidos um no outro, principalmente a primeira na segunda, de tal modo que uma não se explica sem a outra. Vejam-se as palavras de Claude Lévi-Strauss e o “resumo” de J. Mattoso Câmara Jr apresentados na Introdução. Em situação (entre os falantes) não houve necessidade da formalização aqui feita para se entender o enunciado.

Em síntese, o enunciado que para um gramático seria uma monstruosidade linguística explica-se não só por suas relações internas perfeitas (cf. a formalização), mas também pelas relações que apresenta com a situação ou, dizendo de outro modo, ele se explica tanto no plano da expressão como no do conteúdo.

Tomemos outro enunciado, o de nº 9: “Uai, num sei que qui não! ... sê biscoit’ e doce, né?”. Ele constitui uma resposta à pergunta: “O que qui tem na festa lá hoje?”. O famoso “Uai” pode-se dizer que coneta a resposta à pergunta, neste caso. A oração “Num sei que qui não!” é realmente problemática. Constitui a sequência dos dois “quês” o que os construturalistas chamam de “elementos ocasionais”, que no caso podem ser “originais” ou, com mais probabilidade “acidentais”. Destes últimos dizem que são “provocados por um lapso de memória ou por descuido e corrigidos de imediato”. No caso foi corrigido “de imediato”, mas creio que o fato é acidental pois os originais seriam mais intencionais, criações conscientes. “Habituais”, que “são os usualmente repetidos pelo indivíduo para determinada situação”, é que eles não são (Back & Mattos 1972: 23). A segunda oração do período, “... sê biscoit’ e doce, né?” também tem uma estrutura bastante dilapidada. A pausa, ou a curva entonacional que precede “sê” certamente é o significante para o significado “deve ser”. O “né?” que encerra quase todo enunciado dos capelinhenses seria uma espécie de apelo ao interlocutor, uma solicitação de adesão, de uma confirmação, correspondendo a qualquer coisa como “você não acha?”.

Todos estes fatos se explicam pelo diálogo em situação cultural. No caso da primeira oração, o falante poderia ter dito apenas “Num sei” e estaria sua mensagem compreendida pelo ouvinte. O mesmo se pode dizer da segunda, em que bastaria ter dito “biscoit” e doce, né?”, pois estes são as guloseimas mais frequentes na região. Mais uma vez, temos o contexto da situação explicando uma aparente desestruturação da linguagem. Digo “aparente” porque mesmo no caso da segunda oração, na situação em que o diálogo foi proferido nada falta antes do “sê”, pois como vimos, a entoação supre a ausência do significante (segmental).

Passemos agora a examinar problemas de ordem dos elementos no enunciado, a regência e a concordância.



1.1.3. Colocação pronominal

Como já se pôde ver quando falei do período e da oração, a ordem dos elementos não é muito diferente da dos Português Literário, sem falar no nível da palavra, em que os elementos são mais fixos, não admitem variações de posição. O que se pode salientar mais uma vez é que há uma intercalação enorme de períodos, até mesmo de pequenos diálogos dentro de um período maior.

Observando os enunciados de número 2, 6, 8, 9, 10, 11, 13 e 15 da seção 1.1, vemos que ocorrem frequentemente no início de qualquer período “ah!”, “Não”, e “uai”, enquanto que no fim aparecem também com bastante frequência “né?” e “uai”. Dos 17 enunciados transcritos, temos dois iniciados por “ah!”, dois iniciados por “não” e um por “uai”. No final, temos quatro “né?”. Isto é bastante significativo. O “não” inicial não é negação, seu significado é bem próximo do significado de “ah” e “uai”, também iniciais. É uma conexão com o enunciado do outro falante. Poderíamos dizer que estas “partículas” iniciais ligam o enunciado de um falante ao do outro, para manter a sequência, para não dar a impressão de que o que se está falando nada tem a ver com o que o outro disse. O “né?” final seria um sinal de humildade, uma solicitação de adesão, como já disse, e não uma imposição (“O que eu disse foi isso e está dito!”). E tudo isso só existe numa linguagem usada em situação bem marcada. Se bem que André Martinet tenha dito que o tipo de linguagem ideal para ser estudado pela Linguística seja aquele que depende menos do contexto, da situação, aqui o que interessa é justamente a linguagem inextricavelmente ligada a uma situação cultural. E é esta ligação que justifica a existência das partículas acima examinadas e cuja função, como já vimos, é sempre “ligação”: a) do enunciado resposta ao enunciado pergunta; b) do enunciado à situação (solicitação de adesão).

Com respeito à colocação pronominal não existem as famigeradas regras do Português Literário consignadas nas gramáticas: próclise, ênclise e mesóclise. A distribuição dos pronomes (sujeito e objeto) é de suma simplicidade. Vejamos alguns casos:



1. “cê inda me falô: trais ele”

2. “contan’ ele”, “isprican’ ele”

3. “dexa eles dois”

4. “um home qui cê via ele”

5. “es transfiriu ele pa Lagoa Formosa”

6. “ele cunvidô nóis”

7. “o pai dess’ minin’ aqui pode ti ispricá”

8. “quando num tomava dava era un-a dor de cabeça qui Deus me live”



Por esses exemplos podemos inferir a colocação dos pronomes na linguagem capelinhense.

As formas oblíquas “ele”, “nóis”, “ocê” vêm sempre após o verbo. A última não ocorre nos exemplos citados acima, mas é frequente, ao lado de “te”: são alomorfes de um mesmo morfema. No entanto, “te” (e “me”) ocorre sempre antes do verbo. Como se explica o fato?

Se a forma de função objeto é idêntica à forma que ocorre como sujeito, sendo, portanto, tônica, virá sempre após o verbo; é o caso de “ele”, “nóis” e “ocê” (alomorfe de “te”). Se o pronome objeto tiver forma diferente da do pronome sujeito, será átono e virá sempre antes do verbo; é o caso de “me” e “te”.

Isto é, obedecem a um princípio muito simples, que se explica prosodicamente. Logicamente, não existe aquela idiotice dos gramáticos de que “não se pode começar oração com pronome oblíquo”; são perfeitamente possíveis e até frequentes enunciados como: “me dá um copo d’água!”.

Em suma, só há uma regra de colocação pronominal: se o pronome é tônico, virá após o verbo; se átono, antes. Em geral imediatamente após ou imediatamente depois. A respeito dos paradigmas pronominais, ver 1.2.1.



1.1.4. Regência

Com respeito à regência muito pouca coisa há para se salientar. No enunciado 13 de 1.1 encontramos o verbo “chamá” usado intransitivamente, o que pode ser um hápax. Além do mais, como já vimos, o objeto direto dele seria “nóis”, mas como este “nóis” já aparece logo em seguida como sujeito de “í” (ir), ficou uma estrutura semelhante ao que alguns gramáticos chamam de sujeito acusativo, como em “Mandei-o sair”. Só que aqui seria o reverso da medalha, isto é, objeto direto nominativo, apesar da presença do “pa” antes dele, o que se explica pelo uso da linguagem em situação marcada.

Num outro enunciado, que não foi transcrito em 1.1, uma jovem senhora disse: “Ele agradô dele!” (o primeiro “ele” é o filhinho dela, o segundo uma outra pessoa presente), o que pode ser também um fenômeno ocasional, pois não o registrei em nenhum outro momento. “Agradá de alguem” significa “gostar de alguém”. Pode até ser uma “contaminação sintática”. Poderia aduzir expressões como “O qui nós já fizemo, o que qui o Zé já fez, pois não merece...!”, “... quase toda semana saí’ um na cuberta... ô morto, ô atirado” (=morto a tiros) e outros. No geral não apresenta a linguagem capelinhense casos especiais dignos de nota.



1.1.5. Concordância

O que é mais notável na linguagem capelinhense pode ser encontrado naquilo a que as gramáticas costumam chamar de concordância. Tanto assim que creio que vale a pena transcrever uma série de enunciados a fim de introduzir esta parte dos estudos sintáticos.



1. “es transtita ali”

2. “es vem munto no Juaquim do Zé Calist’ ali”

3. “nóis istudô foi aqui na Capilinha mesmo”

4. “ele cunvidô nóis”

5. “intão viéro aqui de passeio”

6. “o que qui nós fizemo?”

7. “ intão pusemo ele adiente, levamo lá p’aquela venda da isquina”

8. “es tudo era mez’ nossos colega de iscola”

9. “ceis sai lá im casa intão u)a hora, tá?”

10. “e intão na hora de saí nóis passa lá”

11. “não, pois então nóis vamo fazê assim!”

12. “não, esses dia mem’ nóis tem’ u)’aí”

13. “tenh’ um, tenho um de dizoito ano”



Nesses 13 enunciados, considerados representativos da linguagem local, pode-se notar, logo de início, que no que concerne à concordância, a linguagem capelinhense é muito pouco redundante (tomando-se a concordância em Português [Literário] como uma marca redundante, uma vez que para concordar terá que haver no mínimo dois significantes para um mesmo significado). Assim, se dizem “nóis istudô”, dizem também “ele cunvidô”, usando a marca de pluralidade/singularidade só no pronome; o verbo permanece invariável, com exceção da primeira pessoa singular, que em geral é diferente de todas as outras (cf. 1.2. Morfologia), como se pode ver no enunciado 13.

O que significa isso?

Significa que, enquanto o Português Literário informa a marca de número tanto no pronome quanto no verbo, apresentando uma redundância de marcas, o falar capelinhense só emprega uma marca, com evidente economia de significantes. Mas, há variações. Nos enunciados 5 e 7 aparecem “viero” e “pusemo” no lugar de “es veio” e “nóis pois”, respectivamente. Como se explica o fato? Trata-se de uma variante da outra forma. No entanto, observe-se que quando a marca de número já aparece no verbo, não é necessário o pronome. O mesmo ocorre no caso da marca de pessoa. Em “viero” e “pusemo” as marcas de número e de pessoa já estão no próprio verbo, daí a desnecessidade de seu aparecimento em um pronome também. É um sistema próximo do do Inglês.

Disso podemos concluir que no Português Capelinhense o verbo pode vir precedido ou não de pronome: quando o pronome aparece é para indicar as marcas de número e de pessoa, que nesse caso não aparecem no verbo, normalmente. Tanto no presente como no passado (cf. “es transita”, “ceis sai”, “ele cunvidô”, etc.).

Mas, e os enunciados 6, 11 e 12, em que aparecem “Nós fizemo”, “nóis vamo” e “nóis temo?” Bem, realmente aqui temos uma duplicidade de significante para um só significado, portanto, redundância. No entanto são três casos dentro de treze. O dado estatístico pode não significar nada; talvez o argumento mais convincente seja o seguinte: como os informantes estavam sabendo que conversavam com uma pessoa “culta”, “da cidade” e, o que talvez seja mais importante, a presença do gravador, tudo isso fazia com que assumissem uma atitude formal, calculada, perdendo muito da espontaneidade. Formas como “nós fizemo”, “nóis vamo” e “nóis temo” são raras, principalmente o “nós” que é visivelmente anormal naquela situação. São os elementos “ocasionais esporádicos” dos construturalistas (Back & Mattos 1972: 23).

Isto é, mesmo um caso de desvio da norma local se explica pela linguagem usada em situação (formal, no caso).

Vejamos agora a concordância nominal, uma vez que tudo que vimos até aqui neste tópico girava em torno da concordância verbal (entre o sujeito e o verbo).



14. “você cunhece alguns”

15. “vamo fazê un-as prisão”

16. “uns povo mei’ criado”

17. “teve uns dia qui foi n’un-a casa cumprida”

18. “tenho um de dizoito ano”

19. “as minina”

20. “sempre dá un-as volta aí”

21. “esses caminh’ aí”

22. “levava as minina lea p’us Pato”

23. “atualmente os minino tudo”



Como se pode ver, só recebem a marca de número os determinantes. O determinado, o substantivo, nunca. Isso é regra absolutamente geral, não há mesmo redundância desta marca. Quando, devido ao contexto, um determinante passa a funcionar como substituto (pronome) do determinado (substantivo), continua com a marca de número (“Você cunhece alguns”). Inclusive, fato que é motivo de mofa por parte de pessoas de fora, o caso nº 22: “levava as minina lá p’us Pato” (= para Patos). Isto é, mesmo o -s de Patos, que deveria estar lexicalizado, é sentido como se fosse marca de plural, não escapa à regra. De fato, a designação para “mais de um anátida” é “os pato”, nunca “patos” ou “os patos”. Não ocorre -s na linguagem local para indicar pluralidade dos nomes. Esta só ocorre no determinante. Daí o surgimento de um determinante na designação da cidade em cujo município está Capelinha do Chumbo, ficando “Os Pato” em vez de “Patos”.

Aliás, diga-se de passagem que o artigo é de uso obrigatório, tanto para os nomes comuns quanto para os próprios (cf. “Aqui no Ariado, você cunhece alguns!”). [Como se vê, há redundância de marca de gênero, como “u mininu”, “a minina”. Essa redundância de marca de gênero se dá também entre substantivo e adjetivo, como em “vaca sortera” e “ferro véio”].

O porquê desta redundância de marcas de gênero dependeria de pesquisas mais específicas e aprofundadas, o que fugiria dos propósitos que me tracei: fazer uma descrição sumária da linguagem para associá-la com a cultura. Talvez isso possa ser feito em trabalhos posteriores. Agora, sem pesquisa mais demorada, aventuraria a hipótese de que a presença da marca de gênero no substantivo [e em seus adjuntos] se explicaria pelo fato de o gênero vir em primeiro lugar, portanto seria mais “essencial” em relação ao radical, enquanto que o número seria mais “acessório”. Além disso, o número pode ser expresso por outro tipo de expressão lexical (os numerais), enquanto que o gênero não se expressa facilmente por outros meios. “Macho” e “fêmea” só se aplicam a seres animados, mas de preferência aos não humanos.

Se os nomes não sofressem também uma marca (de “gênero”, no caso) ficariam “em aberto”, pois sabemos que em Português de um modo geral as palavras devem ter um morfema final (desinência).

Podemos também levantar uma hipótese de caráter sociológico, isto é, a distinção bem delimitada entre a função do homem e a função da mulher na sociedade local. Inclusive no plano dos animais irracionais a diferença de sexo é importantíssima: o macho tem uma função (em geral auxiliar no trabalho, como por exemplo para transportar cargas ou o próprio homem), enquanto que a fêmea tem outra função (a reprodução e a produção de leite, por exemplo). A este propósito, ver também o que se diz em 2.1.1. Com isso não quero dizer que o gênero gramatical seja inteiramente determinado pelo sexo (natureza), mas sim que pode haver alguma influência, alguma tendência.

De qualquer maneira, tanto um como outro revelam também um certo pragmatismo linguístico. De fato, ao evitar redundância de marcas de número, estão os falantes fazendo economia de significantes, expendendo um mínimo de esforço para um máximo de rendimento, consequentemente, simplificando o sistema. No caso do gênero, não há economia de significantes porque é absolutamente impossível sua ausência, é inviável devido à organização semântica da língua (ausência de expressões lexicais que indiquem “masculino” e “feminino” – não “macho” e “fêmea”, note-se!).

Mas, alguém poderia objetar, a questão da linguagem em situação tender à economia, à simplicidade, é um fato universal e não só da linguagem de Capelinha do Chumbo! Sim, é verdade. No entanto, creio que o contrário é que seria de espantar: se a linguagem dessa comunidade fosse inteiramente sui generis. Ela obedece a padrões universais. Sendo assim, então não seria necessário estudá-la, poder-se-ia objetar! É necessário [estudá-la] porque ela usa elementos universais da linguagem humana, mas combinados de maneira diferente. Aí está o peculiar do Falar Capelinhense que constitui o objeto do presente estudo e de qualquer outro tipo de linguagem. Esta noção de combinação de traços, ou de “feixes de traços”, nasceu com a Fonologia (cf. Trubetzkoi 1970; Jakobson 1967) e foi aproveitada por Claude Lévi-Strauss em sua análise da estrutura dos mitos (Lévi-Strauss 1970). Vê-se, portanto, que o fato de a linguagem capelinhense conter princípios universais justifica um estudo aprofundado a fim de se conhecer como ela os estrutura. Este estudo da estrutura linguística fica ainda por ser feito em profundidade.



1. 2. Morfologia

No plano da Morfologia o Falar Capelinhense oferece peculiaridades mais marcantes do que as comentadas na Sintaxe. Como já foi dito, entender-se-á aqui por Morfologia o estudo da combinação de elementos da palavra entre si, o que na prática significa a relação entre morfema radical e morfema afixal. Tradicionalmente ela inclui também a classificação das palavras: dizer, por exemplo, se são substantivos, verbos, adjetivos etc. À primeira vista parece que esta concepção não é mais aceitável, mas como o presente trabalho não se propôs uma teorização sobre as “partes do discurso”, também esta classificação entrará no estudo da Morfologia. Partirei, portanto, da repartição tradicional das “partes do discurso” entre substantivos, adjetivos, verbos, pronomes, advérbios. Nem todos serão tratados aqui. Só serão trazidos à baila aqueles que oferecerem algo de peculiar, que ilustrem melhor a tese proposta.



1.2.1. Flexão nominal

Vejamos primeiramente a flexão nominal, isto é, a combinação entre morfema radical e morfema afixal dos substantivos e adjetivos, nos quais ela em geral obedece a um mesmo princípio. Comecemos com a flexão em número.

Como já foi dito, ou melhor, sugerido, ao tratarmos da concordância, a flexão numeral é muito simples, quase não existe. Examinemos alguns exemplos:



1. “as minina”

2. “eu tâ achano assim qui esses caminho”

3. “os Pato”

4. “agora el pod’ dexá aquez minino fazê a prova assim”

5. “vam’ fazê un-as prisão aí”

6. “era mez’ nossos colega de iscola”

7. “um home qui cê via ele só naques’ trajo casero”

8. “já num quiria andá naquel’ trajo casero”

9. “a lembrança maió qu’eu tenho”

10. “a mesa tem a cheda, as chaveia”



Vê-se facilmente que o substantivo não se flexiona em número. Como já vimos ao falarmos da concordância, isto se deve a uma tendência a evitar redundância de marcas. Só se sabe se um substantivo “se refere a um ou a mais de um ser” (na terminologia tradicional) se o considerarmos no contexto da frase. Aí veremos que ele vem sempre acompanhado de um determinante cuja presença indicará também se o substantivo está no singular ou no plural. Mesmo com nomes próprios o artigo se torna obrigatório, pois só ele indica a pluralidade (cf. nº 3: “os Pato” por “Patos”).

O adjetivo também normalmente não recebe marcas de número. Aliás o Falar Capelinhense não é muito adjetivoso: sendo altamente pragamático, evita excrescências de marcas. Quando ocorre um adjetivo é quase sempre como “predicativo”, isto é, ligado ao substantivo por um “verbo de ligação”. Dos dez enunciados transcritos acima, só dois apresentam um adjetivo em função adstancial, de adjunto adnominal: “trajo casero” e “a lembrança maió”. Estão sem marca de número.

Os determinantes, no entanto, flexionam-se sempre em número. Os mesmos exemplos transcritos para os substantivos valem para o caso dos determinantes. Observando os números 1, 4 e 10, por um lado, e 3 e “uai”, o pião tá correno o risco, né?”, por outro, verificamos que o artigo tem as mesmas marcas que apresenta o Português Literário, o que é válido tanto para o artigo definido, como para o indefinido. O quadro dos artigos é o seguinte:



       definido              indefinido   

            masc.  fem.     masc.  fem

sing.    o          a          um       un-a

plur.    os        as         uns      un-as



O mesmo ocorre no caso dos outros determinantes, como os que aparecem em 2, 4, 6, 7 e 8. Com esses exemplos, mais outros que podemos tirar de outros contextos não incluídos aqui, podemos estabelecer o sistema dos determinantes: demonstrativos e possessivos:



                      demonstrativos

           masc.              fem.

sing.    esse                 essa

plur.    esses                essas

sing.    aquele/aquel   aquela

plur.   aqueles/aquês   aquelas/aqueas



          possessivos

        masc.   fem.

sing. meu    minha (PS1)

         seu    sua (PS2)

         dele   dela (PS3)

plur. nosso  nossa (PP1)

         seus   suas (PP2)

         de(l)es  de(l)as (PP3)



Tanto demonstrativos como possessivos vêm com a marca de número, quer na função de adstantes, quer na função de substantes, isto é, como substitutos.

Quanto à marca de gênero, as coisas se processam diferentemente. De fato, tanto o determinado quanto o determinante a recebem. As razões de sua existência, diante da ausência da marca de plural foi discutida no capítulo da concordância. Apresentemos alguns paradigmas de flexão de gênero no substantivo só a título de ilustração, uma vez que para os determinantes já foram mostrados ao falarmos do número.

Nos diversos espécimes citados desde o início deste livro, conclui-se que a flexão de gênero do substantivo é:



masculino     feminino

minino           minina

cunhado         cunhada

tio                  tia



Como se vê, é tudo muito simples, reduzindo-se quase que ao estritamente necessário, confirmando uma vez mais a tese da “linguagem em situação” de que nos falou Malinovski.

Só a título de completar a seção da gramática que trata dos nomes e dos substitutos, vejamos o quadro pronominal do Falar Capelinhense (pronomes “de tratamento”, “retos” e “oblíquos”, átonos e tônicos):

                                   oblíquos                                                

        retos            sem preposição    com preposição

               eu           me                        mim (PS1)

               ocê         te, ocê                  ocê (PS2)

               ele          (ele)                     ele (PS3)

               nóis        (nóis)                   nóis (PP1)

               oceis      (oceis)                  oceis, ceis (PP2)

               e(l)es      e(l)es                    eles, es (PP3)



A PS3 às vezes apresenta o alomorfe “el” (“l” lateral) nas três funções; a PP3 quase sempre é “es”, mas pode apresentar o alomorfe “eles” também, sempre nas três funções. As formas entre parênteses são sempre tônicas, mas ocorrem como oblíquas sem preposição após o verbo.

Observar o destaque em que vem sempre a PP1, isto é, o locutor no momento da fala: ela se distingue de todas as outras. Isto está estritamente relacionado com o sistema de conjugação verbal, que será o próximo assunto.

Para terminar, é necessário acrescentar que há também a flexão de grau, cujo status como flexão é frequentemente contestado. Deixando de lado querelas teóricas, em FC são muito comuns os diminutivos [e aumentativos]. Nas falas transcritas neste livro, temos, entre outros os seguintes:



Diminutivos                                                            Aumentativos

Tuninho ‘Toninho’ < Tonho < Antônio                   Zé Licão ‘Lica?’

provinha ‘provinha’ < prova                                     Chapadão ‘Chapadão’ < chapada

mininadinha ‘meninadinha’ < meninada < menino  Roxão ‘Roxão’ < (boi) roxo

bizerrinho ‘bezerrinho’ < bezerro                             puerão ‘poeirão’ < poeira



1.2.2. Flexão verbal

No que toca ao verbo a simplicidade de formas é mais marcante ainda, em comparação com o Português Literário. Alguns exemplos já foram aflorados quando se falou da concordância verbal. Observando todos os exemplos de enunciados citados até aqui, mais os que constam das transcrições que tenho em mãos, constata-se facilmente que para verbos como “contá”, “vendê”, “partí” e “pô” aquilo que as gramáticas chamam de “presente do indicativo” se resumiria ao seguinte:



PS1 eu conto/vendo/parto/ponho

PS2 ocê conta/vende/parte/põe

PS3 ele conta/vende/parte/põe

PP1 nóis conta/vende/parte/põe; (contamo) (vendemo) (partimo) (pomo)

PP2 oceis conta/vende/parte/põe

PP3 eles conta/vente/parte/põe



Em outros termos, excetuando a PP1, para todas as demais pessoas o verbo apresenta uma só forma. A distinção só se faz pelo pronome.

O “infinitivo” nunca tem o “r” final, como no Português Literário. O que distingue “conta” (substantivo) de “contá” (infinitivo) é o acento. Vejamos as outras formas verbais mais comuns.



1. Infinitivo: contá, vendê, parti, pô

2. Pretérito perfeito [uma forma para a primeira pessoa e outra para a segunda]:

PS1 contei, vendí, parti, puis

PS2 contô, vendeu, partiu, pois

PS3 contô, vendeu, partiu, pois

PP1 contô, vendeu, partiu, pois // (contamo) (vendemo) (partimo) (pusemo)

PP2 contô, vendeu, partiu, pois

PP3 contô, vendeu, partiu, pois // (contaro) (vendero) (partiro) (pusero)



3. Pretérito imperfeito [uma única forma]:

PS1contava vendia partia punha

PS2                   

PS3                   

PP1                   

PP2                   

PP3                  





4. Futuro:  

Só se expressa por formas compostas, portanto, não se trata de uma forma como as até aqui comentadas. A este respeito, pode-se consultar Couto (1974). A idéia de futuridade pode ser expressa de várias maneiras:



(a) Pode ser pela mesma forma usada para o presente: “Ceis sai lá im casa uma hora, tá?”

(b) Pela mesma forma seguida de um advérbio de tempo: “Amanhã nóis sai lá”,



o que é mais comum do que a fórmula anterior.



(c) Mas, talvez a forma mais empregada seja “não, iss’ el’ vai contá”



Isto é, a maneira mais comum de indicar a futuridade consta do verbo “í” (“vô”/”vai”) mais o infinitivo do verbo que expressa o fato a comunicar.

Todas as formas até aqui comentadas são do “indicativo”. Vejamos agora as do “subjuntivo”” [todas apresentam uma única forma para pessoa e número].



5. Imperfeito:

(se) eu contasse, vendesse, partisse, pusesse

(se) ocê                         

(se) ele                         

(se) nóis                        

(se) oceis                       

(se) eles                        



6. Futuro:

(quando) eu  contá, vendê, parti, pusé

(quando) ocê                  

(quando) ele                  

(quando) nóis                 

(quando) oceis “               

(quando) ele                  



7. Imperativo:



Conta, vende, parte, põe



Há outras formas, algumas mais ou menos lexicalizada, como é o caso de “havéra de”, no sentido de “deveria”, “poderia ser”, bem como de “dêva sê”, no sentido de “pode ser”, entre outras. Como se viu, algumas formas apresentam variantes. Em geral a primeira pessoa do plural e a terceira do plural. Assim, no presente do indicativo, tem-se:



nóis conta”/”contamo”, “nóis vende”/”vendemo”

nóis parte”/”partimo”, “nóis põe”/ “pomo”



Como já foi dito ao se falar da concordância, esta alomorfia se explica pela economia da linguagem: evita-se usar duas ou mais marcas de plural numa só expressão. Ou se usa “nóis conta” ou “contamo”. No entanto, a primeira forma é a mais corrente, a que talvez no futuro seria a única, não fosse o influxo externo exercido pelas comunidades mais evoluídas sobre a comunidade capelinhense.

Tanto é verdade que se prefere a forma com o pronome, que em alguns casos não apresenta alomorfia. É o caso, por exemplo, da PP3 do verbo “pô”: “es põe”. Não ocorre *”põem”. O mesmo no caso de “nóis contava”, em que não há o alomorfe *”contávamo”. Ou, então, para “nóis contasse”: Não existe *”contássemo”.

Tudo isso se explica dentro da simplicidade do sistema linguístico capelinhense. *”põem” é muito próximo de “põe” foneticamente: os dois se confundiriam. *”contávamo” e *”contássemo” exigiriam a introdução de proparoxítonos no sistema, o que iria de encontro aos seus padrões prosódicos (cf. 4.2). Se mesmo nos casos em que não ocorrem estas restrições prefere-se a forma analítica (com pronome), quanto mais aqui. Se olharmos os diálogos transcritos, veremos que a preferência é para as formas com o pronome. Inclusive meu acompanhante (auxiliar), um rapaz de nível de quarta série ginasial, dizia “nóis vai”. Creio mesmo que [os capelinhenses] só usam formas como “contamo”, “vamo”, “fomo”, etc., quando assumem uma atitude calculada, principalmente devido à presença de forasteiros. O único caso em que usam sempre uma forma como “vamo” é quando vão chamar, incitar alguém para alguma coisa: “Vamo!”. Esta é a verdadeira forma “incitativa” da linguagem local. Quando se quer “incitar”, “convidar”, “estimular” alguém para alguma coisa sempre se usa o “vamo!”. Se o “convite” é para outra coisa que não “í” (ir), usa-se o “vamo!” seguido do verbo que expressa o que se deseja: “Vamo trabaiá!”, “vamo vê!” (cf. “let’s” em Inglês!).

Isto é o que se poderia dizer em termos de gramática tradicional. No entanto, o próprio bom senso nos diz que esta não é a abordagem mais sensata, mais condizente com a verdade dos fatos. Para fazer uma apresentação do sistema verbal em questão, teríamos que estabelecer primeiro alguns pressupostos teóricos.

Primeiramente temos que distinguir entre formas sintéticas (ou expressões lexicais) e formas analíticas (ou expressões sintáticas). Como expressões lexicais só existem as seguintes formas:



1. “contá”

5. “contei”/”contô”

2. “conto”/”conta”

6. “contano”

3. “contava”

7. “contado”

4. “contasse”

8. “vamo!”



Entre as formas analíticas (sintáticas), temos:



9. “tô contano”

10. “vô contá”

11. “tá contado”

12. “vamo contá”.





Em segundo lugar, é necessário esclarecer que o único tempo verbal bem marcado é o passado (“pretérito perfeito”). Quando dizem “conto”, pode isso referir-se ao passado, ao presente ou ao futuro, dependendo do contexto da situação em que foi proferido. Quando dizem “contei”, no entanto, trata-se de um fato situado no passado, em relação ao momento em que se fala, sem mais, independentemente do contexto. Isto também tem explicação dentro da linha de pensamento deste trabalho. É que numa comunidade coesa como a de que se trata, cujo modo de vida é de uma grande simplicidade e o relacionamento indivíduo-indivíduo é bastante estreito, o passado talvez seja a parte do tempo mais marcante, uma vez que é ele que assegura o status quo, é o que se passou ou o deixou de se passar, isto é, a tradição, entre eles e que regula seu relacionamento no momento em que estão em diálogo. Se for verdade esta hipótese extralinguística, teremos explicado o fato de o “tempo passado” do verbo ser o mais marcado, ou melhor, ser o único marcado.

Resta ainda uma interrogação: por que só no ”presente” e no “passado” (perfeito) há uma forma distinta para a PP1, em oposição a todas as outras? Creio que se trata de uma questão de estatística. Estes dois tempos são mais usados do que os outros e, como tal, exigem uma distinção em relação a todos os outros. De qualquer maneira é uma questão que depende de maiores pesquisas, o que não cabe aqui.








2. Léxico

Examinemos agora a parte da língua que mais diretamente se relaciona com a cultura, o seu léxico. “O léxico da língua é que mais nitidamente reflete o ambiente físico e social dos falantes. O léxico completo de uma língua pode se considerar, na verdade, como o complexo inventário de todas as idéias, interesses e ocupações que açambarcam a atenção da comunidade; e, por isso, se houvesse à nossa disposição um tesouro assim cabal da língua de uma dada tribo, poderíamos inferir, em grande parte, o caráter do ambiente físico e as características culturais do povo considerado” (Sapir 1969: 45). De fato, o léxico de uma língua representa a maneira pela qual seus falantes analisam a realidade, o ambiente (físico e social). Por isso é a parte mais flutuante da língua, a que mais sofre acréscimo e supressão de elementos, sob a forma de arcaísmos e neologismos, devido ao interesse ou desinteresse pelo elemento do ambiente que eles designam.

Será entendido por Lexicologia “o estudo do vocabulário de uma língua” (Borba 1971), a “disciplina que estudia el léxico de una lengua en su aspecto sincrónico” (Carreter 1971), bem próximo do conceito de Matoré, para o qual ela é “uma disciplina sociológica que utiliza o material linguístico - as palavras” (apud Borba 1971).

De fato, como não se cansam de salientar tanto linguistas como sociólogos, a língua (entenda-se aqui, o léxico de uma língua) não é uma nomenclatura das coisas existentes na natureza, mas representa a maneira pela qual os falantes percebem estas coisas da natureza, ou melhor, a maneira pela qual eles “recortam” a realidade. De fato, cada palavra de uma língua é o reflexo de um recorte na realidade feito por seus falantes (Martinet 1964: 8-9). Assim sendo, nada mais natural que o fato de ser o léxico o aspecto da língua que mais espelha a maneira ela qual um povo encara o mundo, a maneira pela qual reagem diante das pressões do ambiente, tanto físico quanto social. Por exemplo, qualquer leigo em matéria de linguística é capaz de saber, ou melhor, de entender porque os habitantes do litoral têm mais termos referentes ao mar e às atividades a ele ligadas do que um habitante do interior. Ou porque para uma criança da cidade, em geral só existe “boi” e/ou “vaca”, enquanto que para uma criança que mora numa fazenda, existem, no mínimo:



a) bezerrinho, bezerro, novilho, boi

b) bezerrinha, bezerra, novilha, vaca



Às vezes vão mais longe ainda, fazendo distinção entre “vaca sortera” e “vaca parida”, entre “boi de carro” (ou “boi carrero”) e “boi reprodutor” (ou “marruais”). Designam-se até aspectos mais especializados, como por exemplo, cor, falta de um ou de ambos os chifres, falta de rabo etc., etc. Isso tudo se deve ao fato de que as pessoas que lidam diretamente com o gado têm necessidade de fazer estas distinções, pois têm que se referir a este ou àquele animal específico a todo instante. Do que decorre que todo componente do plantel tem um nome especial. Todos estes aspectos foram mencionados por Sapir na obra supra e em vários outros escritos de sua autoria.



2.1. Onomástica



O primeiro item que levaremos em consideração é a Onomástica. Segundo o já mencionado Carreter, ela é “(la) rama de la lingüística destinada al estudio de los nombres propios”. Acrescenta ele que a Onomástica “se subdivide en Toponimia o Toponomástica y Antroponimia” (Carreter 1971). Aqui serão levados em conta, como subramos da Onomástica, não só a Toponímia e a Antroponímia, mas também a Zoonímia.

Vários outros subtópicos serão abordados, mas não têm uma designação especial, são campos específicos ou da Toponímia, ou da Antroponímia, ou da Zoonímia.



2.1.1. Antroponímia

Antroponímia é [a] “rama de la Onomástica que se ocupa de los nombres de personas” (Carreter 1971), não havendo necessidade de maiores detalhes de conceituação.

Em Capelinha do Chumbo, as pessoas não são chamadas, de um modo geral, pelo nome de registro. Todos são chamados ou [por] apelidos ou por meio de hipocorísticos ou ainda por adulteração (melhor seria dizer adaptação) fonética ou morfológica de seu nome de batismo (ou de registro). A não ser que se inquira explicitamente o nome de registro, ao se perguntar qual o nome de uma pessoa, obteremos uma denominação do tipo das acima referidas. Os casos em que as pessoas são chamadas pelo nome oficial (de registro) são excepcionais. Em minha pesquisa, particularmente, registrei muito poucos e mesmo assim em geral são usados quando não há necessidade de maiores caracterizações devido a homonímias. Nomes como Maria Juão”, Osmar, Juaquim etc., são usados nestas circunstâncias. Mas, se houver necessidade de se evitar homonímias Maria será Maria do Mané Preto, Juão será Juão Fará” etc. De um modo geral, as pessoas são designadas por um dos seguintes processos.



a) Nomes próprios oficiais “adulterados”, isto é, adaptados aos padrões linguísticos locais:



Tõe-Me-Live, Zé Nosso, Juca Boa, Zé Misquinha, Zé Duro, Ninim Pul-i-Fica, Zé Broca, Pedo da Máquina, Zé Caganera, Gerardo Pilutinha, Tião Lobo, Juão Fará, Zé Prego, Gerardo Penerero, Juaquim Foiero



Destes, alguns apresentam adaptação fonética (ou fonológica, cf. 4.1.4) em uma parte (em geral o pré-nome), e a este se acrescenta uma outra caracterização. Essa caracterização é quase sempre uma expressão descritiva de aspectos físicos, psicológicos ou sociais. Dentre os de caracterização psicológica (ou de comportamento, ou de personalidade) podemos salientar os seguintes:



“Zé Misquinha, Zé Duro, Juca Boa, Tõe-Me-Live”



Quanto ao aspecto de caracterização física pode-se aduzir estes:



“Gerardo Pilutinha, Zé Prego, Gerardo Marimbomdo, Zé Pança”



A respeito do aspecto social, o que chama a atenção é a designação pela profissão:



Pedo da Máquina, Gerardo Penerero, Juaquim Foiero”.



b) Apelidos:



“Barra, Futrica, Rengo, Tatu, Chiquéte, Bolô, Goró, Baio, Cachimba, Ferro-Véio, Ferruja, Firrim, Churim, Chipe, Bissudo, Broa, Tampinha, Piula, Péia, Fengo, Matutinha, Béba, Pão, Djem (o m é mesmo bilabial [djem]), Pistrunca (ou Pristunca), Martelo, Canga, Daca, Gim, Galo, Chigura, Tuquinha (Toquinha), Tuca, Tonga, Santo, Gambá, Morô, Dô-Dô, Bosta-Seca, Parafuso, Górda, Patarata, Bonzóia, Tiuca ([tchuka]), Mas-Grande, Chata, Sinhô”.



Como no caso (a), aqui também as designações de alguns se referem a caracterizações psicológicas ou comportamentais (Futrica), mas no geral os apelidos se referem mais a caracterizações físicas, e são frequentemente criados por processos metafóficos e/ou metonímicos (Chata, Tampinha, Piula, etc.).



c) Hipocorísticos:



Fio, Né, Zé, Neném, Tião, Tõe, Quitito, Juca, Crade, Barba, Nadim, Quinca, Có ou Cozinho

Alguns destes talvez entrassem melhor em outras categorias, como “Fio” (de “Filho”), mas como obedecem aos mesmos processos dos hipocorísticos, classifico-os juntos.



d) Pertinência a alguém:



Zé do Juca, Maria do Agripa, Darva do Zé, Delci do Béba, Neném do Chiquéte, Rosa do Juca Boa, Maria do Sinéso, Maria do Pedo Zangão, Neném da Marieta, Vicente da Bina, Fio Mélia (= da Amélia), Nega do Géro, Nega do Chiquéte, Maria do Fidirico, Maria do Mané Preto, Zé do Olinto, Zé da Olinta, Arlindo do Juão Lazo, Nego da Chiquinha, Zé Artino (< Zé do Artino, isto é, Altino), Neném do Nico”.



Tanto no caso de criação de uma parte descritiva para acompanhar o pré-nome (e às vezes até este está adaptado, segundo os processos mencionados em a, b, c, d, quanto no de qualquer outro tipo de adaptação), o que se nota é uma profunda imbricação linguagem-cultura. A adaptação se processa também no pré-nome, adaptação esta que coincide de certa forma com o processo apresentado em c.

Quase todo mundo tem apelido em Capelinha do Chumbo. Sua não existência é exceção, não a regra. O surgimento do significante (Saussure 1971: 97-103), apesar de um tanto aleatório, obedece a alguns princípios gerais da estrutura sociolinguística local. Em geral (ou sempre) os padrões silábicos são fatores de suma importância (cf. 4.1.3), com exceção de “Djem”. Também a prosódia (cf. 4.2).

Como o apelido é um caso especial, talvez valesse a pena umas poucas palavras sobre sua gênese. Em alguns casos há uma motivação (ainda no sentido saussureano) em sua escolha, como no caso de “Tuquinha” (Toquinha), que é muito pequena. “Piula” se deve ao mesmo fato, pois a menina assim chamada é muito miúda, “do tamãe dun-a piula (pílula)”. Mas, em geral o nome pode até ser uma combinação de sílabas formando uma “palavra não existente na língua (tomando-se “palavra” no sentido popular, não no sentido técnico). Nesta linha podemos citar, por exemplo, “Rengo”, “Goró” etc., que não foram motivados por nada, seu nascimento só poderia ser explicado se remontássemos ao momento em que alguém o pronunciou pela primeira vez. “Patarata” é omomatopaico: segundo informaram, ele fala sempre assim, através de sílabas como “pa-pa”, “ta-ta”, “ra-ra” etc.

Mais importante, porém, do que explicações genéticas dos apelidos é a sua própria existência. Todos são nomes populares, de fácil emissão, os fonemas e os padrões silábicos são dos mais legítimos no Português, pertencem ao verdadeiro núcleo das tendências da Língua Portuguesa.

Os hipocorísticos, que são um “processo apelativo usado na linguagem caseira para traduzir carinho” (Borba 1971), por si sós já explicitam uma “familiaridade”, refletida na linguagem, uma vez que só se chama por nomes assim a pessoas da própria família. Como em Capelinha do Chumbo como um todo usam-se estes nomes (há pessoas que só são conhecidas na localidade por eles, como “Nadim”, “Quinca”) mesmo para pessoas não pertencentes à própria família consanguínea, temos mais uma vez reforçada a afirmação de que toda a população tem um forte sentimento de unidade, de pertinência à mesma comunidade, o sentimento da existência de interesses em comum fortemente calcado em cada um.

Os apelativos classficados em d são também reveladores, do ponto de vista sociolinguístico.

Vários nomes indicam a pertinência de alguém a outrem, pois “Zé do Juca” é o José filho do senhor “Juca” (hipocorístico de José, por sua vez). Em geral indicam filiação. Esta às vezes remonta até ao pai do pai. Perguntei a um menino de quem era filho e ele me respondeu: “Da Maria do Pedo Bia”. Isto é, a “Maria” (sua mãe) pertence à família que tem por chefe o senhor “Pedo Bia”; este, por sua vez, tem este nome por pertencer à família que tem por chefe o senhor “Bia” (Bias). A razão de o menino ter mencionado o nome da mãe e não o do pai, que é o normal, é o fato de este já ter morrido.

Mas, esta pertinência a um núcleo familiar indicada no nome real dos capelinhenses permite outras inferências. Dos 21 nomes aqui citados, apenas 3 indicam a pertinência de um homem a uma mulher (Vicente da Bina, Fio Mélia, Zé da Olinta). 18, portanto 99,9%, revelam subordinação da mulher ao homem e 14,2% revelam subordinação do homem à mulher. Isto é revelador do tipo de sociedade do interior do Brasil, como todos sabemos.

Se observarmos bem, verificaremos que os nomes das pessoas só indicam pertinência de homem a mulher no caso da relação filho-mãe, pois do contrário só o inverso se verifica. De todos que aqui citei, alguns indicam a pertinência da mulher ao marido (Darva do Agripa, Darva do Zé”, Maria do Mané Preto etc.), outros indicam sua pertinência ao pai (Neném do Chiquéte, por exemplo). O último caso ocorre quando a mulher é solteira.

Que conclusões podemos tirar observando esses fatos?

A que mais chamou minha atenção e a que mais diretamente se refere ao tema deste livro é a de que, em geral, todo mundo tem dois nomes: um oficial, outro real.

O que vem a ser isto? Simplesmente que a tradição notarial tem já um elenco de nomes oficiais, isto é, consagrados pela tradição linguística luso-brasileira. Quando nasce uma criança e os pais vão registrá-la no cartório, dizem que querem o nome Antõe”, mas o encarregado dos registros consigna Antônio. Às vezes eles dizem ao encarregado do cartório o nome certo, sabem qual é a forma correta, mas continuam chamando a criança de Antõe ou de Tõe. Quando ela cresce e alguém pergunta seu nome para anotar em um documento ela poderá dizer Antônio, mas se não fôr para anotar (assentá”), dirá Tõe ou quando muito Antõe. Em outros termos, há uma adaptação às normas linguísticas dos nomes pertencentes ao diassistema ou ao Português Literário. Estas são perfeitamente pertinentes no meio sociocultural em questão. Não se trata de uma deformação do Português Literário, como pretendem alguns gramáticos e filólogos puristas.

A linguagem do caipira funciona em seu meio tão bem como o Alemão na sociedade alemã. Qualquer linguagem deve ser julgada, portanto, dentro do ambiente em que é falada. Não podemos julgar o Português Caipira com os mesmos critérios com que julgamos o Português Literário, assim como não podemos medir água com unidades de extensão, ou cordas com litros, decilitros. É por isso que não concordo com falar em “metaplasmos”, o que implicaria que a linguagem de que trato seria uma “modificação” (para pior, segundo os puristas) do Português Literário. Veja-se o que diz a respeito o linguista belga Maurice Leroy, de outra perspectiva embora.



2.1.2. Toponímia

A Toponímia, segundo Carreter, é a “rama de la Onomástica destinada al estudio de los nombres de lugar” (Carreter 1971); segundo Mattoso Câmara são topônimos os “nomes próprios (.....) de lugares ou acidentes geográficos” (Câmara s/d). Capelinha do Chumbo está situada numa região que talvez não favoreça o surgimento de [muitos] topônimos. Está à beira de um rio (o Areado) e sua comunicação com outras comunidades é mais com Patos de Minas. Assim sendo, tomarei um ponto determinado próximo à estrada que vai para aquela cidade, uma fazenda distante da “sede” do distrito uns seis quilômetros, mais ou menos. Nesta fazenda mora uma família típica do lugar, cujos hábitos (inclusive a linguagem) não diferem praticamente em nada dos dos habitantes do “comércio” (um dos nomes que dão à zona “urbana” por oposição à “rural”, ou roça). E, já que tomei esta família como referência, abordarei não só os nomes dos “pontos” que identificam em seu caminho a Capelinha do Chumbo, mas também todos os acidentes que a circundam e que seus membros sentiram necessidade de nomear.

Como já disse Sapir (Sapir 1969), um elemento do ambiente só receberá um nome se representar, de um modo ou de outro, algum interesse para o homem. O que pretendo mostrar aqui é, portanto, se os membros daquela família denominaram realmente os acidentes mais evidentes ou se [apenas] aqueles que servem de ponto de referência para alguma coisa.

Circundando a fazenda identificam-se:



“Serra do Parmital” e “corgo da Capivarinha” (norte);

Capelinha do Chumbo e corgo das Batata (sul);

Horizonte Alegre (Tavares) (leste)

Serra da Roxa (oeste).



Agora vejamos o que a referida família identifica em seu caminho para Capelinha do Chumbo.

Primeiramente, ainda em seu domínio, passam pela Lagoa dos Miguel; em seguida passam pelo Jerômo Abacaxi (=Jerônimo Abacaxi), assim conhecido por vender esta fruta; logo a seguir passam pelo Mato Seco, pela Barriguda (uma paineira velha), pelo Morro de Pedra, pela Cruizinha (=cruzinha), pela Catiara (já na entrada, um bairro de Capelinha do Chumbo), pelo Cimintéro (=cemitério) e, finalmente, entram em Capelinha do Chumbo.

Por que será que uma árvore velha, talvez secular, sem nada de especial, é ponto de referência? Ao seu lado há uma série de coqueiros, algumas mangueiras..... Por que o ponto não ficou sendo chamado Coqueiros ou Mangueiras? Talvez a explicação esteja numa velha lenda que diz que debaixo da paineira existe um tesouro enterrado, mas que ninguém consegue arrancar de lá, pois aparecem uns trem esquisitos, o capeta, e não o deixam. A Cruizinha parece mais difícil ainda de explicar. No entanto, ela está num trato de estrada muito longo (entre o Morro de Pedra e a Catiara) e, como não há nenhum outro acidente que sirva de referência (o trecho é uma chapada), então ela passou a ser significativa para os passantes. Quanto a Catiara, sua fama se deve à sua antiga má fama: era a zona das mulheres de vida fácil, no tempo em que o garimpo fazia grandes riquezas na região. Assim sendo, o nome perdura até hoje. O Mato Seco situa-se numa curva de caminho a uns duzentos metros da Barriguda. Mas, seu tamanho (não muito grande em termos relativos) chama a atenção. Além do mais contam-se muitas histórias de assombrações que assustam os transeuntes noturnos. Quanto ao Morro Vermelho e o Morro de Pedra, as próprias designações descritivas já dizem por que receberam nomes. O Cimintéro dispensa comentários, além de estar entre Catiara e a praça de Capelinha do Chumbo propriamente dita.

Todos os acidentes comentados até aqui são identificados por todos os habitantes das redondezas e não só pela família em questão. Com exceção dos pontos do caminho da fazenda até Capelinha do Chumbo, quese tudo que comentei até aqui pertence ao que poderia chamar Macro-Toponímia. De fato, a maioria dos acidentes são de conhecimento geral, quase oficial, servindo de baliza até mesmo para as autoridades do governo demarcarem distritos ou mesmo limites de uma fazenda (cf. os textos legais que aparecem no início do livro).

No entanto, a família em questão distingue aspectos da natureza sem importância para os de fora, mas que para ela são de suma importância. Assim, além dos já referidos, e que abrangem acidentes como “Serra da Roxa”, “Serra do Parmital” e “Capivarinha do Chumbo”, os membros da família (pai, mãe, filhos, avós e “agregados”) identificam e nomeiam aspectos que à primeira vista não têm nenhuma importância. O “Ispigão” é um espigão situado em um ponto extremo do terreno de sua propriedade, do lado sudeste. Sua importância está não só em ser ponto extremo, mas também no fato de que quando uma rês (boi ou vaca) ou “animal” (cavalo ou égua) vai para lá é difícil encontrá-lo, pois é o último lugar a que se vai. A “Lagoa”, já mencionada, fica em terras de propriedade da família e tem nome por ser também um ponto extremo, e que às vezes se alaga na época da chuva, do lado nordeste. É o lugar mais retirado da “casa”, ou sede da fazenda. Nos fundos da casa passa um pequeno córrego que deságua em um maior que vem “lá do Nadim”, isto é, da fazendo do Nadim (Leonardo). Nenhum dos córregos tem nome. No entanto, quando querem se referir a um deles, dizem “o Corguinho Nosso” ou “o Nosso Corguinho”, por oposição ao “Corgo do Nadim”. O pedaço da fazenda que lhe pertence, situado dentro do ângulo formado pelo encontro dos dois, é também “Ispigão”. Quando se quer fazer a distinção entre este e o outro já mencionado, diz-se “o Ispigão do Nadim” para este e “Ispigão do Quinca” para aquele, pois estes são os nomes dos proprietários das terras em cujo limite se situam. Identificam os membros da família ainda o “Oi d’Água” (=Olho d’Água, [fonte]), a nascente de “Nosso Corguinho”. Aparentemente ele não tem nenhuma importância, mesmo porque logo acima dele está um bosque muito mais chamativo. No entanto, o “Oi d’Água” é lugar de as crianças brincarem, daí este nome ser usado quase que exclusivamente por elas. Além do “Corgo do Nadim” está um outro espigão, coberto de vegetação: é a “Capuera”. Além de estar numa posição imponente, a capoeira situa-se no caminho que vai para o “Josia” e para o “Nego”, dois parentes da família em questão.

Na face leste da casa, há umas árvores, que também chamam a atenção dos membros da família do Zé Artino (ou Zé do Artino): são dois ou três pés de Binga, árvores imponentes que cobrem o sol nascente e têm esse nome por produzirem uma semente cujo casco se assemelha a uma binga, isto é, isqueiro. Menos significativa parece uma pequena árvore, ao lado das Binga (As Binga): a Arvinha. Tem bastante folhagem, está no galho de estrada que parte para a casa e é também lugar para as crianças brincarem. Talvez sua copa arredondada é que tenha chamado mais a atenção. Estão situadas (a Arvinha e os Pé de Binga) a uns duzendos metros da casa. A fazenda como um todo está dividida em Casa (comCurral, Chiqueiro, Quintal e Manguera = pequeno cercado em que se colocam os porcos), Pasto de Cima e Pastinho. Além disso distinguem a Istrada que vem do Parmital e passa pela Arvinha e pelos Pé de Binga em direção a Capelinha, e a Linha, a estrada para automóveis que liga Capelinha do Chumbo a Patos de Minas, passando a uma distância em que se avistam os carros transitarem (aliás, carro significa carro-de-boi, o carro urbano é otomóve).

Por oposição ao tipo anterior de aspectos toponímicos, podemos chamar a este último de Micro-Toponímia, isto é, a parte da Toponímia que se preocupa com aspectos de detalhes da paisagem física de uma região pequena.

Mais uma vez é patente o pragmatismo linguístico. Denominam-se aspectos da paisagem que para uma pessoa não pertencente a sua cultura não têm nenhuma importância. Para os habitantes do local, no entanto, apresentam uma importância vital, pois o homem está intimamente ligado a eles, assimila-os a sua vida diária e se refere a eles a todo instante em sua vida.



2.1.3. Zoonímia

Uma fazenda contígua à da família sobre que falei acima, pertencente à “Tonha do Nadim” e administrada por José Severo Alves, apelidado de “Zé Licão”, dedica-se à criação de gado leiteiro. Além disso tem alguns outros animais para o uso pessoal. Vejamos os seus nomes.

Nesta fazenda existem:



1. Dois cavalos: Lontra e Castainho

2. Setenta vacas: a) paridas: Suberana, Caneta, Canoa, Beja-Flor, Sinuca, Boa-Vista, Lembrança, Lavareda, Pinta-Sirva, Avenida, Londrina, Revista, Prumissóra, Vélósa, Brasilera, Saudade, Mansinha, Viana, Praianinha, Fiurinha, Lindóia, Pampulha, Figurona, Pretinha, Marelona, Princesa, Noturna, Códórna, Rivirada, Camponesa, Caipira, Ruxinha, Dóbrada, Prenda, Luxosa, Ispórtiva, Sete-Copa, Coroa, Luxenta, Fiança, Primavera, Campera, Curitiba, Brasília, Rósada, Dóbrada, Sardinha, Gurita”.

b) sortera: Rainha, Cabrocha, Cinema, Chinesa, Divisa, Barra-Mansa, Carambola, Galocha, Grã-Fina, Ispadinha, Gaúcha, Bórdada, Serenata, Mazona, Pinta-Roxa, Catiara, Goiana, Manchada, Tétéia, Jóia, Uberaba”.

3. Dez bois: a) reprodutor: Presente e Cadarço

b) “carrero”: “Barroso e Roxão”, “Briante e Gigante”, “Trochado e Istrêlo”, “Dilicado e Namorado”.

4. Três cachorros: “Piano, Piloto e Japi”.



Como se vê, esta é a parte da Zoonímia, nome não muito usual, mas que sem maiores comentários serve para os propósitos deste trabalho. Zoonímia é, aqui, a parte da Onomástica que trata dos nomes de animais.

Poderiam parecer ociosas as listas de nomes de animais. No entanto, quantas conclusões poderíamos tirar de uma olhada ainda que superficial a elas? Quantas indagações elas sugerem ao estudioso!

Só para sugerir alguns exemplos: a) Por que tantos animais com nomes de cidades brasileiras? (“Londrina, Lindóia, Pampulha, Curitiba, Brasília, Mazona - Amazonas -, Catiara - [nome de uma] localidade próxima a Patos de Minas e [de um] bairro de Capelinha do Chumbo -, Uberaba”)? b) Por que nomes de coisas que não pertencem à cultura local (“Rivista, Praianinha, Cinema, etc.”)? c) Por que alguns animais têm nomes que designam seres abstratos e outros têm nomes que desigam seres concretos (“Lembrança, Luxósa, etc., / Camponesa, Coroa, etc.”)? d) Por que alguns têm nomes sugeridos por características físicas e comportamentais (“Fiurinnha, Pretinha, Ruxinha, Manchada, Tróchado/ Mansinha, Luxenta, etc”) e outros não (cf. os itens a, b, c)? Ou então: e) Por que os bois “carrero” têm quase sempre nomes que sugerem dinamismo, força, como aumentativos (“Gigante, Roxão”)?

Enfim, é um campo aberto a pesquisas sociolinguísticas de valor inestimável. Não vou entrar em pormenores, respondendo aquelas perguntas, pois este livro é um tanto abrangente, não podendo entrar em detalhes mais profundados. De qualquer maneira, nota-se que, tirante as perguntas que sugeri, os zoônimos seguem a tendência geral dos hábitos linguísticos da comunidade. Veja-se, a título de exemplo, a estrutura fonológica, silábica dos nomes (cf. 4.1.4).

Além do mais, seguem as mesmas tendências mencionadas para o caso dos apelidos. Só que aqui a influência externa é mais marcante, talvez devido ao fato de a presença dos animais ser um tanto mais efêmera. Ou então, pelo fato de o ser humano ser superior aos animais e, portanto, os termos referentes a ele são mais constantes, mais impregnados da cultura local.

Assim como se pôde ver, quase todos os nomes são designações transparentes (cf. Ullmann, s/d), isto é, são ou nomes descritivos ou designações adaptadas de outro ser. E na grande maioria são nomes que estão perfeitamente integrados na cultura local, tanto em sua conformação geral (esquemas silábicos, acentuação tônica - cf., 4.1.4 e 4.2) como do ponto de vista cultural (são palavras já existentes para designar outras coisas). No entanto, há nomes sugeridos por realidades inexistentes na cultura local: o fato se explica pela pressão das comunidades externas, quer mediata quer imediatamente. Ou então, poderia ser um desejo de extravasar, uma curiosidade pelo desconhecido. A hipótese mais plausível é a primeira, pois como já foi dito, existe o influxo de grandes centros através de viagens de pessoas do lugar (o que é muito raro) e dos meios de comunicação (no caso, o rádio).



3. Fraseologia

Para Mattoso Câmara a Fraseologia é o “estudo das FRASES FEITAS, isto é, fossilizadas em sua forma e seu sentido e usadas no discurso à maneira de uma locução” (Câmara s/d). É, portanto, distinta da Lexicologia como foi esta aqui entendida, uma vez que trata de palavras combinadas, ainda que um ou vários de seus elementos estejam substituídos pelo contexto da situação em que o diálogo se dá. Mas é, por outro lado, distinta da Sintaxe, pois só trata das expressões cristalizadas.

Entra aqui também o que talvez coubesse melhor na Lexicologia, isto é, palavras típicas da região. Serão consideradas nesta seção as expressões sintáticas e as expressões lexicais.

Passando os olhos pelas expressões fossilizadas mais frequentes em Capelinha do Chumbo, podemos apresentar uma classificação razoavelmente satisfatória para os propósitos deste trabalho. Distinguirei expressões sintáticas e expressões lexicais, como já fiz em outro local (Couto 1974). Como não poderia deixar de ser, as expressões lexicais apresentadas são em maior número do que as sintáticas uma vez que, como já vimos, são a parte da língua que mais diretamente se refere ao ambiente, à cultura. E aqui temos outra razão para a separação da Fraseologia da Lexicologia: por aquela entendo além do que já disse, a parte das expressões aparentemente mais típicas do lugar, principalmente em confronto com as que ocorrem em um grande centro como São Paulo.

Eis uma lista de expressões sintáticas.



1. lá invém ou lenvém = lá vem, vem lá...

2. lá invai ou lenvai = lá vai, vai la....

3. por conta de = por causa de

4. isturdia = outro dia, certo dia atrás

5. dimais = muito (Aquela casa é bem feita dimais)

6. quando dé fé” ou quan dé fé” = quando menos se esperar

7. im antes de = antes de

8. “à riviria = muito (tem gente à riviria)

9. ingulí a lobera = voltar atrás em um negócio, [não manter a palavra]

10. mundo véio = muito (tem um mundo véio de gado)

11. tra banda = o lado de lá do rio (ele tá lá de tra banda do rio, lá no tra banda do rio tem muito gado, ele mora lá no tra banda

12. atolá a briosa = sair-se mal, entrar pelo cano

13. batê a pedra = prometir ir trabalhar para alguém e não ir

14. num tem base não = não dá para se avaliar (ele é munto temoso, num tem base, não!. Esta parece ser uma expressão passageira [neológica].

15. tá nos caso de = ter intenção de

16. dos mais = muito (ele tá dos mais riguilido = assanhado)

17. pegá luita = luta corporal amigável, que consiste em jogar o adversário no chão e dominá-lo

18. na lóba = por pura sorte, por um triz (ele ganhô na lóba)

19. passá a manta = sair ganhando em uma catira (eu te passei a manta)

20. um terno de = muitos (tinha um terno de home lá”)

21. im des de = desde



Não fiz um inventário exaustivo, o que extrapolaria os objetivos visados aqui. Como já declarei antes, anotei só aquelas [expressões] que saltam à vista. Pois bem, podemos fazer a seguinte classificação, segundo o campo semântico (cf. Ullmann, s/d; Guiraud, 1969) a que pertencem:

a) expressões relacionadas com o espaço:

“lá invém” ou “lenvém”

lá invai ou lenvai

tra banda

b) relacionadas com o tempo:

“isturdia”

quan dé fé” ou quando dé fé”

im antes ou inhantes

im des de

c) relacionadas com a quantidade:

“dimais”

“à riviria

mundo véio

dos mais

um terno de

d) relacionamento indivíduo-indivíduo:

“ingulí a lobêra”

batê a pedra

pegá luita

passá a manta

e) relacionadas com causa:

“por conta de”



Ficou, portanto, um resíduo difícil de juntar em uma classificação. São eles:



“atolá a briosa”

num tem base

tá nos caso de

na lóba



Todas elas, quer as classificadas, quer as não classificadas revelam um profundo envolvimento dos falantes com o ambiente físico e social em que se acham. De fato, das 21 transcritas: três são usadas para situação no espaço; quatro para situação no tempo; quatro para relacionamento indivíduo-indivíduo. Isto é, mais da metade. A própria existência de expressões típicas já é reveladora desse envolvimento, isto é, os falantes são de um espírito altamente telúrico, ligado à terra de tal modo que a própria linguagem se distingue da linguagem de outras comunidades brasileiras.

As expressões lexicais são em muito maior número e, eo ipso, de muito mais difícil classificação. De qualquer maneira, salta logo à vista a grande quantidade delas, usadas em diversas circunstâncias.



1. “jabo” ou “jaibo” = corte, sulco, ferida, fenda

2. petêco = desordem, bagunça, sujeira

3. inguijilado = definhado, murcho

4. amojá” = estar com o úbere cheio, prestes a parir

5. “íngua = coisa que incomoda (vamo tirá essa íngua daí”: a propósito de um carro que estava estorvando)

6. mutrêco = coisa feia, desajeitada, boneco de trapo, espantalho

7. trelá” = combinar, dar-se bem (Ez num trela não)

8. “panhá” = comprar, adquirir (“eu tava pensano im panha u)a”)

9. “oh!” (longo: “ôô”, [o:]) = como vai, [oy] (cumprimento informal)

10. isparolado = desajeitado, estabanado

11. fuzarca = confusão, brigaria

12. atipado = de boa aparência, principalmente para homem

13. quebrado = duro, sem dinheiro

14. diária = diariamente

15. catirá” = trocar, barganhar (breganhá”)

16. cafuçu = bobo, feio, preto (para pessoas)

17. inzoná” = fazer hora, demorar

18. imbondo = coisa sem importância, ninharia, migalhas (ele só come imbondo, eu fiquei imbondano toda a vida)

19. imbondero = que se preocupa com ou que só come imbondo; aquele que imbonda”.

20. tifuque = preto, crioulo, pau-de-fumo (para pessoas)

21. pantentê” = muito (um pantentê de coisa = muita coisa)

22. sungá” = suspender, erguer

23. manqüéba = uma pessoa que manca, manco

24. digero = depressa (vem digero, minino!)

25. nascida = furúnculo

26. tarado = bobo (cê é tarada, hein!, de uma menina dizendo para um colega)

27. riguilido = assanhado

28. letéque = falante, loquaz

29. pendenga = caso insolúvel, dificuldade

30. móde = a fim de (a mãe saiu de per mode é’a num falá” = a mãe sair de perto a fim de não falar)

31. manero = leve

32. “éco! = expressão de nojo, de repugnância

33. munha = igual a munho (=moinho), [que mói], isto é, desordem, bagunça

34. perrengue = adoentado

35. hai = há (a gente vévi perrengue que num hai jeito). Esta expressão é rara

36. assentá” = anotar (debitá”)

37. discabriado = desanimado, desorientado

38. léréia = vozerio, algazarra

39. fréjo = bagunça, desordem (vam jogá a cana pu fréjo = vamos jogar a cana para a meninada, para quem conseguir pegar)

40. zangá” = piorar (uma doença)

41. balangá” = balançar

42. rodero = roda



Pondo uma certa ordem, poderíamos classificá-las [as expressões] da seguinte maneira:

a) relacionamento indivíduo-indivíduo:

“trelá” [de ‘atrelar’, para a junta de bois]

panhá” [de apanhar]

oh! ou “ôp!

catirá”

b) confusão, desordem:

“petêco”

fuzarca

leréia

munha

c) coisa que incomoda, feia, desajeitada:

“mutrêco”

isparolado

cafuçu

tifuque

manqüéba

pendenga

“éco

[“íngua]

d) características da aparência ou do estado psicológico do indivíduo:

“atipado”

tarado

discabriado

e) doenças:

“perrengue”

nascida

f) ninharia, coisa sem importância:

“imbondo”

imbondero



Aqui vale o mesmo que disse a propósito das expressões sintáticas. Mesmo que a grande maioria das expressões não tenham podido entrar em uma classificação semântica, a própria existência de 38 delas num corpus não muito extenso como o que colhi já é significativa. Isso sem entrar em considerações diacrônicas como a conservação de modos de dizer não mais existentes em outros níveis da Língua Portuguesa, como é o caso de “móde” e “hai” (este raríssimo) ou expressões nascidas por “imagens” como metáforas (“trelá”, “québrádo”: aquele se relaciona mais com bois, como em “trelá os boi” = jungi-los).

O importante em tudo é que o Falar Capelinhense apresenta características próprias que o distinguem dos de outras regiões do Brasil, se bem que seus falantes nem sempre tenham consciência do problema. Esta consciência é marcante só no que se refere à unidade de interesses, fazendo com que constituam quase uma única família, um bloco compacto como comunidade.






4. Fonologia

Como já foi dito na Introdução, aqui se entende por Fonologia o estudo do significante fônico. Mas, o significante fônico é por demais complexo, apresenta diversas facetas que devem ser levadas em conta numa descrição científica da linguagem. As duas principais distinções que senti necessidade de fazer foram as que se podem estabelecer entre Fonologia Segmental e Fonologia Suprassegmental. Pela primeira entende-se o estudo da parte segmentável do significante, isto é, a que tradicionalmente dividimos em sons da fala e, de um ponto de vista formal, em fonemas, sílabas etc., como /p/, /b/, /s/, /z/, /ch/, /a/, /i/, /u/ ou então /-a-/, /-pa-/, /-ar(-)/ etc. Pela segunda entende-se o estudo da parte do significante que se sobrepõe à primeira, ou seja, a parte melódica. Dentro da Fonologia Suprassegmental (ou Prosódia) estudaremos, ainda que perfunctoriamente, a entoação da frase e a acentuação tônica, além de fazer algumas observações marginais, porém pertinentes ao assunto em tela.

Transcrevamos foneticamente dez enunciados a fim de dar uma ideia do material sobre o qual o estudo se efetuará. É claro que o corpus total é bem mais extenso: o material sobre que fiz todas as observações deste capítulo consta de 106 enunciados longos de cerca de 10 palavras cada, perfazendo um total de 1.060 palavras. Eles pertencem a 6 informantes, a fim de garantir uma maior generalidade. Além disso, este corpus foi suplementado por outras anotações feitas já em forma técnica (=[transcrição fonética]) no momento da entrevista (todo o corpus está gravado em fita “cassette”).

Dos informantes, dois têm cerca de 30 anos, outro tem 62 anos, outro aproximadamente 9 anos, e dois, finalmente, uns 40 anos mais ou menos. Como se vê, abrange várias faixas etárias.

Vamos aos enunciados.



1.[dèvi te mayz o men uns trinta ãnu]

2. [lembu tudu brinkava dji negu fujidu]

3. [as kawza ki eli fazia kòbrava]

4. [jèla dèvi se u jogu dji piãu, nè?]

5. [tein u kabèsayu, tein u xèkabein]

6. [un vay se ladrãu, u otu vay se asasinu, sein protesãu, i u otu vay se pidãu]

7. [i chego na xua vendenu us trein]

8. [a tèxa prãyna, a tèxa meyya sinzenta]

9.[ew viyya atè u cheitu madruga]

10. [ja pe’go gas’ta diñeru, nè]



Obs.: [Fiz algumas adaptações. Por exemplo, só indico a sílaba tônica quando estritamente necessário; para o “r” de “terra” e “rua” emprego o símbolo [x], ou seja, a velar fricativa surda; o chamado “r” caipira, retroflexo, segue a IPA, []; não representei detalhes fonéticos como as vogais fracas átonas finais]. No mais, pode-se ler como na ortografia. A pronúncia da representação ortográfica não difere do Português Literário. Há muita simplificação para facilitar a transcrição].



4.1. Consoantes

Sem levar em conta os sons bemolizados (flat) e sustenidos (sharp), bem como as “modificações” avançados (fronted) e recuados (backed), segundo a terminologia americana, pode-se chegar ao seguinte quadro de contoides, entendendo-se por contóide qualquer som de natureza consonantal ou “qualquer som que não seja um vocoide” (cf. 4.1.2), isto é, que não seja um som oral ressoante (resonant)” (Pike, 1971, 244).



Bilabial         labdental  alveolar   pal-alveolar palatal velar        uvular

p                              t             tch                       k

b                              d            dj                         g

                  f

                  v                                

                                s                           ch          x

                                z                           j                 

                                r                           lh                         (R)

                                l



m                             n                           ñ





Temos, portanto, 20 contóides no Falar Capelinhense, de natureza indubitável. Os outros são mais complicados, e serão comentados mais abaixo.

O contoide uvular não é muito bem definido. Às vezes se parece com o velar fricativo [x], às vezes parece um som intermediário entre os dois. De qualquer maneira, não serão dois fonemas distintos como veremos mais adiante. Os contoides [ñ] e [lh] (como em pinha e pilha, respectivamente) na verdade não ocorrem. Mesmo no Português Literário (ou Culto) seu caráter não é muito bem definido ([ñ] seria mais a semivogal nasalizada, como em [viy~a] ‘vinha’; [lh] parece mais [ly], como em [filya] ‘filha’ ). Por outro lado, temos um vibrante simples alveolar [r] e um vibrante refroflexo [erre capira], além de um [t] e um [d] alveolares e um [tch] e um [dj] alveopalatais.

Estes sons e estas sequências de sons constituem pares suspeitos com outros sons que lhes são acústica e/ou articulatoriamente próximos. Isto será objeto do tópico seguinte.

Vejamos agora quais são os sons foneticamente similares uns aos outros que podem ser contrastados em ambientes idênticos ou em ambientes semelhantes, uma vez que nestas condições sua existência resulta de escolha do falante, portanto traz informação, não sendo variantes combinatórias nem variantes livres.



/p/ : /b/ : /m/

[‘pedu] : [‘bebdu] ‘Pedro : bêbedo’

[‘xipa] : [‘xiba] ‘ripa : riba’

[matu] : [batu] mato : bato

[cha’ma] : [ka’ba] ‘chamar : acabar’

[cha’ma] : [ka’pa] ‘chamar : capar’



Os únicos casos de sons como estes em final de sílaba [interna à palavra, embora] que consegui registrar foram os seguintes:



[‘kõmdu] ‘cômodo’

[kilõmtru] quilômetro

[bebdu] bêbedo



Eles serão comentados ao falarmos da estrutura silábica.



/t/ : /d/ : /n/

[‘tè] : [dè] ‘até : der’

[‘ãta] : [‘ãda] ‘anta : anda’

[nadu] : [dadu] nado : dado

[ã’dãnu] : [ã’dadu]



Aparentemente, os dois últimos casos não são bons exemplos, pois em um temos o contóide precedido de vocóide nasal e no outro temo-lo precedido de vocóide oral. No entanto, como veremos ao tratar dos vocóides, em [‘ãnu] e [ã’dãnu] os vocóides tônicos só são nasais devido à presença de contóide nasal ([n]) imediatamente após eles. Logo, não são fonemas nasais, uma vez que o traço nasalidade não traz informação nenhuma devido ao fato de ser mecanicamente determinado pelo contexto.

Os contóides [tch] e [dj] que, como já foi salientado, constituem pares suspeitos com [t] e [d], respectivamente, merecem uma atenção especial. Isto porque a seguinte pergunta pode ser feita: São eles variantes de um fonema ou correspondem a fonemas distintos? Observando palavras como



[‘tava], [‘te], [‘tè] ‘estava, ter, até’

[‘tòpu], [‘to], [‘tudu] ‘topo, estou, tudo’

[‘tãtu], [‘te~pu], [‘tõtu], [tu~da] ‘ tanto, tempo, tonto, tunda’

[‘tchidji], [tchiy~a] ‘ Tide [<Aristides], tinha’

[‘djiya], [dji~yeru] ‘dia, dinheiro’



verificamos que os contoides [tch] e [dj] só ocorrem antes do vocoide [i], ao passo que [t] e [d] nunca ocorrem nesta posição. Sendo, assim, seu uso é determinado mecanicamente pelo contexto, e como eles são foneticamente aparentados, podemos concluir que [tch] e [t] são submembros (alofones) de /t/, e que [d] e [dj] são submembros (alofones) do fonema /d/. Isso porque, além do mais, [t] e [d] constituem dois fonemas distintos, como já se verificou.



/k/ : /g/

[‘karsa] : [‘garsa] ‘ calça : garça’

[‘kèru] : [gèxa] ‘quero : guerra’

[‘xe~gu] : [xãnku] ‘Rengo : arranco’

[‘kwal] : [i’gwal] ‘qual : igual’



[R] e [x] parecem constituir pares suspeitos com os contoides supra. Se bem que o motivo para tal seja muito fraco, será, contudo, comentado o fato ao falarmos do uvular [R] e do velar [x].



/f/ : /v/

[‘faka] : [‘vaka] ‘faca : vaca’

[‘fi~] : [‘vi~] ‘ fim : vim’

[‘xifa] : [‘viva] ‘rifa : viva’

[gaxafa] : [gaxava] garrafa : agarrava



/s/ : /z/

[‘si~ku] : [‘zi~ku] ‘cinco : zinco’

[‘kasa] : [‘kaza] ‘caça : casa’

[‘xòsa] : [‘xòza] ‘roça : rosa’



De todos os contóides comentados até aqui estes são os únicos que ocorrem em final de palavras e mesmo em final de sílaba (medial ou final). Só que não se opõem nesta posição. Sua distribuição é determinada pelo contexto. Quando em final de sílaba seguida de consoante surda na sílaba seguinte ou em final de enunciado (de última palavra) só ocorre [s], jamais [z]; quando em final de sílaba seguida de consoante sonora ou de vogal na sílaba seguinte (a não ser que haja pausa após o contóide sibilante) só ocorre [z], nunca [s].

Talvez valesse a pena recordar que só aparecem em contextos como os seguintes (nunca como suporte do morfema de plural):



[doys] dois

[nòys] ‘nós’

[us] ‘os’

[uz amigu] os amigos

[mayz o me)nu] ‘mais ou menos’

[to’xezmu] ‘ torresmo’

[kòsta] ‘costa’



/ch/ : /j/

[‘cheytu] : [jeytu] ‘ sujeito : jeito’

[‘cha] : [‘ja] ‘chá : já’

[mu’chochu] : [a’joju] ‘muxoxo : ajoujo’

[‘achu] : [‘traju] ‘acho : trajo’

[‘xãchu] : [‘xãju] ‘ rancho : arranjo’



/R/ : /l/

[‘karu] : [‘kalu] ‘caro : calo’

[travi’seru] : [ka’belu] ‘travesseiro : cabelo’

[mar] : [‘mal] ‘mar : mal’



Com exceção de alguns monossílabos, como [mal], e menos polissílabos ainda, não é muito comum o contóide [l] em final de sílaba (e de palavra). Não obstante, registrei algumas alternâncias interessantes:



[al’tchiva] ~ [ar’tchiva] ‘Altiva’ (nome de mulher)

[al’ker] ~ [ar’ker] ‘alqueire’

[kwal’kE] ~ [kar’kè] ‘qualquer’



De qualquer maneira, em final de palavra estes dois fonemas não se confundem (não há neutralização entre eles, segundo a terminologia dos fonólogos de Praga): não ocorrem pronúncias como *[ani’mar] (animal), frequentes em outras regiões do Brasil. A alternância supramencionada só se verifica em final de sílaba intra-vocabular. [O nome de lugar “Parmital” visto acima é revelador dessa tendência. A líquida da primeira sílaba é interna à palavra, logo, é sempre [r]. A da última, por estar em posição final de palavra, é [l] mesmo]. Como segundo elemento de um grupo consonantal, tal como em [‘prãta]/[‘plãta], também só ocorre [r].

De qualquer maneira, evita-se o uso desses sons em final de palavra de várias maneiras:

a) pelo acréscimo de um [i] átono após as [palavras do Português Literário] terminadas em [l] [subjacente], como em:



[‘sòli] ‘sol’

[nòr’mali] ‘normal’

[‘mili] ‘mil’



Se bem que formas como [ka’lori] ‘calor’ também tenham sido registradas, mas já na zona rural, se assim se pode chamar a “roça” por oposição ao “arraial”;

b) pala ausência pura e simples de [r] como ocorre no infinitivo de todos os verbos:

[cha’ma] ‘chamar’

[amo’ja] ‘amojar’

[‘tè] ‘até’

[‘i] ‘ir’

[po] pôr



Nas outras palavras em uso em Capelinha do Chumbo que apresentam [r] final ele permanece. Não existem no Falar Capelinhense pronúncias como [‘ma] e [si~’yo] para “mar” e “senhor”, respectivamente, se bem que em outras regiões do país o fato ocorra.



[muy’yè] ‘mulher’

[kuy’yè] ‘colher’



Voltaremos a este problema ao tratarmos da estrutura silábica.



/x/

Decidi representar assim o som inicial de “rua” e o medial de “carro”, apesar da restrição apresentada acima. Isto é, o contoide [x] não está bem nitidamente distinto do contoide [R]. Nas posições supra, às vezes parece ocorrer o uvular, às vezes o velar. Frequentemente parece mesmo ocorrer um som intermediário entre os dois. Uma solução definitiva dependeria de pesquisas em laboratórios de fonética, o que iria muito além dos objetivos que me propus neste ensaio. Assim sendo, será grafado com o símbolo [x] tanto fonética quanto fonemicamente.

De qualquer maneira, não se trata do “trilled”, não se trata do “r francês”, [ou seja, não se trata da vibrante múltipla uvular]. Ocorre mesmo em final de sílabas em casos esporádicos, variando livremente com o contóide [rr], o “r caipira”, e com o vibrante simples (“flap”) [r]. Ele só se opõe distintivamente a /r/ em início de sílaba inicial, como em [‘kaxu] / [‘karu] ‘carro/caro’, uma vez que em meio de sílaba (ou como segundo elemento de grupo consonantal) são representados por [r] somente, havendo, portanto, uma sub-diferenciação (under-differentiation) entre eles, bem como uma super-diferenciação (over-differentiation) entre [r] e [l] (cf. Pike 1971: 141, 142). Em ambos casos é a “neutralização” de distinções existentes alhures (cf. Trubetzkoi 1970:  80, 246-261). Em final de sílaba, a situação é a seguinte para estes contoides:



Fonema realizado por     

  /r/ vibrante simples

  [rr] retroflexo (“r caipira”)

[x] velar



O som [R], nos raros casos em que ocorre, só realiza o fonema /x/. É importante observar também que /x/ se atualiza como [g] quando seguido de consoante sonora. Portanto, o [g] do quadro de contoides não passa de um alofone combinatório de /x/.

O que estará acontecendo com os fonemas /x/ e /r/?

Eu solicitei a dois casais de aproximadamente 30 anos que pronunciassem as palavras “aberto, certo, tarde, mar, ar, firme, Valdir, norte, sorte, professor, morto, furto” e o resultado foi o seguinte (A=Agripa, Z=Zé Professor, D=Dalva do Zé, M=Maria do Agripa).



A - [a’bèxtu], [‘sèxtu], [‘tagdji], [‘marr], [‘arr], [‘figmi], [val’dirr], [‘nòxtchi],

[profe’sro], [‘moxtu], [‘fuxtu]

Z - [a’bèxtu], [‘sèxtu], [‘tagdji], [‘marr], [arr]. [‘figmi], [val’dirr], [‘nòxtchi],

[profe’sor], [‘moxtu], [‘fuxtu]

D - [abèxtu], [‘sèxtu], [‘tagdji], [‘max], [ax], [‘figmi], [val’dix], [‘nòxtchi],

[‘sòxtchi], [profe’sor], [‘moxtu], [‘fuxtu]

M - [abèxtu], [sèxtu], [‘tagdji], [‘mar], [ar], [‘figmi], [val’dir], [‘nòxtchi],

[‘sòxtchi], [profe’sorr], [‘moxtu], [‘fuxtu].



A mesma pessoa pronuncia ora [rr] ora [x], [com a variante [g], e até mesmo [r], sem nenhuma consistência. Talvez o que seja importante no caso seja o fato de que os membros da comunidade não percebem nenhuma diferença entre um e outro som, isto é, ambas as variedades são normais ali.

Mas, a hipótese que me parece mais viável seja a de que se trataria de uma zona de transição entre a pronúncia [do] “r caipira” do Centro-Sul e a nordestina. Como zona de transição, é natural apresentar ora uma, ora outra forma, uma vez que sofre o influxo de dois lados.

O mesmo fenômeno ocorre com os vocoides e [o] e [ò] pretônicos. Ora ocorre um, ora outro.

Em síntese, as consoantes, isto é, os fonemas consonantais do Falar Capelinhense são os seguintes:





p          t                       k

b          d                      g

                f    s      ch          x

      v   z        j

                 r  

                        l

    m              n         



perfazendo um total de 17, contrariamente aos 19 do Português Literário, uma vez que não existe nem a alveopalatal nasal /ñ/ nem a alveopalatal lateral [lh].



4.2. Vogais

Quanto aos vocóides silábicos, os que se pode depreender dos dados fonéticos de que disponho são os que se encontram no quadro abaixo, sendo que o til (~) depois de uma vogal indica que ele é nasal (esta pesquisa não é aprofundada, do ponto de vista fonológico):





                             i,  i~                     u~ u

                                    e, e~          õ, o

                                           è, ò

                                             ã

                                               a



Os [vocoides] nasais estão representados no centro, relativamente aos orais correspondentes, porque, fisicamente, os equivalentes de qualquer vocoide oral são mais centralizados. Afora isso, várias outras distinções feitas por nossos gramáticos (como, por exemplo, entre vogais reduzidas e outras) não são pertinentes aqui.

Passemos a estudá-los contrastando-os em ambientes idênticos ou semelhantes a fim de verificarmos se são todos fonemas distintos ou se um ou outro é submembro de outro fonema.



/a/ : /ã/

[‘ata] : [‘ãta] ‘ata : anta’

[pasa] : [pãsa] passa : pança

[sa] : [sã] ‘“sá”’ : sã’

[paw] : [pãw] pau : pão



“Sá” é forma de tratamento íntimo entre mulheres; é o feminino de “sô”, [até mais usado do que o feminino, e uma das marcas de mineiridade lingüística].



/è/ : /e/

[‘éla] : [‘eli] ‘ela : ele’

[‘sèw] : [‘sew] ‘céu : seu’

[‘tè] : [‘te] ‘até : ter’



Esses dois sons só se opõem distintivamente em posição tônica. Fora daí só ocorrem em sílabas pretônicas em variação livre. Veja-se, por exemplo, [xè’vòrvi] ~ [xe’vòrvi] ‘revólver’. O fato de não ocorrer [è] e [ò], em posição postônica se explica por não virem nunca em final de palavras paroxítonas e pela ausência total de palavras proparoxítonas.



/e/ : /e~/

[‘echu] : [‘e~chi] ‘eixo : enche’

[‘sedu] : [‘se~tu] ‘cedo : sento’

[ka’reta] : [kwa’re~ta] ‘careta : quarenta’



Aparentemente se oporiam em final. No entanto, se observarmos que palavras como “tê” e “tem” são foneticamente [‘te] e [te~y~] ‘ter, tem’, verificaremos que não há esta possibilidade.



/i/ : /i~/

[‘ida] : [‘i~da] ‘ida : inda (ainda)’

[‘vida] : [vi~da] ‘vida : vinda’

[‘vi] : [‘vi~] ‘vi : vim’



/ò/ : /o/

[‘òka] : [‘oka] ‘óca : ôca’

[sò] : [‘so] ‘só : sô’

[a’v] : [a’vo] ‘avó : avô’

[a’jòju] : [a’joju] ‘(eu) ajójo : (o) ajoujo’



“Oca” [‘òka] é o buraco da roda do carro [=carro de boi]; “sô” [so] é fórmula de tratamento íntimo entre os homens, masculino de “sa”, como já vimos: “Uai, sô, num sei não!”; “ajójo” é a primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo “ajojá” (ajoujar); “ajôjo” é o substantivo equivalente.

Paralelamente ao caso de /è/ e /e/, só se opõem em ambientes idênticos ou semelhantes em posição tônica. Portanto, ocorrem em variação livre em posição pretônica também:



[kò’kãw] ~ [ko’kãw] ‘cocão’ (peça do carro de boi)

[kò’xe~nu] ~ [ko’xe~enu] ‘correndo’



/o/ : /õ/

[‘otu] : [õtchi] ‘outro : ontem’

[‘trocha] : [‘trõcha] ‘trouxa : troncha’ (= fem. de “troncho”, i.e., sem um dos chifres)



Em final não ocorre [o]. Alguns monossílabos que no Português Literário terminam neste som têm, no Falar Capelinhense, outra forma. Exemplos:



[ku~] ‘ com’

[bãw] ‘bom’



Mesmo palavras como “tom” e “som”, quando ocorrem, soam mais como [‘tõu~ e [sõu~]. Este problema será aflorado também ao se falar da estrutura silábica.



/u/ : /u~/

[u] : [u~]‘o : um’

[ú~ta] : [u’za] ‘untar : usar’

[‘mudu] : [‘mu~du] ‘mudo : mundo’

[‘nu] : [‘nu~] ‘nu : “num”’



Esse “num” é forma átona de “não” quando ocorre imediatamente junto do verbo.



Em conclusão, todos eles se opõem entre si (não foram contrapostos todos eles uns com os outros mas, se os mais próximos são fonemas distintos, quanto mais os mais distantes foneticamente!). Portanto, são 12 os fonemas vocálicos: /a, ã, é, e, e~, i, i~, ò, o, õ, u, u~/.



4.3. Semivogais

Os vocoides assilábicos [ou semivogais] são quatro. Ei-los;



              Vocóides assilábicos                

             anterior       posterior       

         oral  nasal        oral   nasal

         y        y~          w,     w~ (nos ditongos escrito como  [u], como em [kãu~].

Observando-os em seus ambientes podemos fazer os contrastes em ambientes idênticos ou análogos, como fizemos com os contoides e os vocoides silábicos. Mas isto será assunto dos parágrafos seguintes.



/w/ : /y/

[‘paw] : [‘pay] ‘pau : pai’

[vaw] : [vay] vau : vai



Em posição pré-vocálica e inicial de palavra há uma palavra de uso corrente, típica do lugar, que apresenta [w]: [‘way] ‘uai’, a qual, no entanto, pode realizar-se também como [u’ay]. O [y], no entanto, nunca aparece em início de palavra. Em início de sílaba medial ele aparece como equivalente ao [lh] do Português Literário.



[fiyyu] filho

[foyya] folha

[muy’yè] ‘mulher’



Comparemos estruturas como estas com outras, para verificarmos se o segundo [y] de palavras que tais resulta de escolha do falante ou se é determinado mecanicamente pelo contexto, coso em que não teria existência fonêmica:



[feyyu] : [feytu] feio : feito

[foyya] : [koyza] folha : coisa



Como se vê, o [y] seria uma ocorrência do fonema /y/. No entanto, ele está aí sempre depois de um outro [y] e seguido de vogal na sílaba seguinte, e sempre depois de uma sílaba tônica. Tantos casos de restrição são mais que suficientes para nos autorizar a considerar o segundo [y] de sequências como estas como uma projeção do primeiro [y] na vogal seguinte, ou como um “som de transição” (outra maneira de dizer a mesma coisa). Portanto, a grafia fonêmica daquelas palavras só pode ser: /’fiyu/, /‘foya/, /’mu’yè/, /’feyu/. E o vocoide assilábico pertence à sílaba que o segue, é claro. Isso explica a inexistência  de /lh/ no Falar Capelinhense.

Os dois vocoides assilábicos nasais merecem um tratamento à parte. De fato, como já assinalou Eunice Pontes numa obra que não é específica de Fonologia (Pontes 1972), [y~] só ocorre depois de vogal nasal. Exemplos:



[‘mi~y~y~a] ‘minha’

[tõy~zi~] ‘Tõezim’ (<Tõezinho)

[‘pu~y~y~a] ‘punha’

[‘põy~]‘põe’



Como [y] oral nunca ocorre nesta posição, segue-se que o [y~] aqui só é nasal devido à nasalidade da vogal que o antecede. Portanto, não é um fonema nasal, mas sim uma variante do oral homorgânico. Conseqüentemente, a representação fonêmica destas palavras deve ser: /’mi~y~ya /, /tõy~’zi~/, /’pu~ya /, principalmente levando-se em conta a interpretação dada ao segundo [y~].

Com o posterior [w~] ocorre algo paralelo: só aparece após vogal nasal. Exemplos:



[‘pãw~] ‘pão’

[‘vãw~] ‘vão’

[‘nãw~] ‘não’



Além disso, sempre após o vocoide [ã], pelo menos até onde pude investigar. Sendo sua existência regida mecanicamente pelo contexto, é também variante combinatória de /w/. Em outros termos, [w] e [w~] estão em distribuição complementar.

A título de recapitulação e síntese, vejamos o quadro completo dos fonemas do Falar Capelinhense: consoantes, vogais e semivogais (vocoides assilábicos do ponto de vista fonético). Embora numa disposição um pouco diferente da empregada nos quadros dos contoides, dos vocoides silábicos e dos vocóides assilábicos, a representação segue a mesma linha de Pike, uma vez que o quadro é calcado no de David W. Reed e Yolanda Leite, no capítulo “The segmental phonemes of Brazilian Portuguese: Standard Paulista Dialect” (In Pike 1971, 194).



Em síntese, o Falar Capelinhense tem:



17 consoantes

12 vogais

2 semivogais

31 fonemas



diferentemente do Português Literário, cujo quadro de fonemas é o seguinte, segundo os construturalistas:



21 consoantes

12 vogais  

33 fonemas



Isto se deve ao fato de eles considerarem /w/ e /y/ como consoantes (semivocoides sonoros) e de existir neste nível de nossa língua o fonema /ñ/ (cf. Back & Mattos 1972: 69 e 72).



   consoantes              vogais                   semivogais

p          t              k       i, i~      u, ~u          y  w

b          d             g       e, e~     o~.o

      f    s    ch   x          è          ò

      v   z     j                         ã

           r                               a 

           l

m       n  






4.1.4. Estruturas silábicas



Após um estudo minucioso de 29 enunciados contendo 366 sílabas, cheguei ao seguinte quadro estatístico dos padrões silábicos do Falar Capelinhense:



estruturas silábicas          número de ocorrência

CV                                     191

V                                         90

CVS                                    37

CVC                                   11

VC                                      11

VS                                        7

CVSC                                   6

CCV                                     6

CSV                                      2

CSVC                                   2

CCVSC                                1

CCVS                                   1

SVS                                      1                             

Total de sílabas................366



Está patente a superioridade numérica do padrão CV, que supera o segundo lugar (V) em quase três vezes. Ora, “a sequência ‘consoante mais vogal’ mostra ser a melhor sequência e por isso é a única universal entre as variações de padrão silábico” (Jakobson 1967: 79). Se juntarmos ao padrão dominante CV todos os outros indiciados por CV-, no caso CVS e CVC, isto é, os que são variações do padrão original CV, teremos um total de 239 sílabas. Em outros termos, um total de mais de 65% do número total de sílabas.

Como se vê, inclusive o padrão silábico do Falar Capelinhense é mais simples do que o do Português Literário, se bem que dentro dos propósitos deste trabalho seria perigoso inferir que esta simplicidade de estruturas silábicas teria alguma coisa a ver com a simplicidade de condições sociais da comunidade. De fato, há povos selvagens cuja língua apresenta estruturas silábicas muito mais complicadas que as de palavras alemãs como Zwerg (anão) e Pflanze (planta), etc.

Não é necessário neste trabalho dar uma lista exaustiva dos fonemas que ocorrem nas diversas posições da sílaba. No entanto, valeria a pena salientar os que ocorrem em final de sílaba (medial e final) e os que podem constituir grupos consonantais, uma vez que isto explica certos fatos da linguagem local.

Dos que ocorrem em final de sílaba, temos os seguintes: /r/, /s/, /l/, com as variações já vistas acima.



Estruturas          exemplos                

CVC                    [‘ma], [‘kaska], [‘mal]

VC                       [‘fata], [‘falta], [us]

CVSC                  [‘poys], [mays]

CSVC                  [kwa’kè], [i’gwal]

CCVSC               [‘treys], [‘kruys]



As características supra valem para outras finalidades também. Já que a tendência natural do falar local é para o padrão CV, temos explicadas várias formas que vinham sendo consideradas deformidades, desvios do “bom falar”. Por exemplo, por que ocorrem formas como

[adjivo’gadu] ~ [djivo’gadu] ‘advogado’

[ka’lori] ~ [ka’lorr] ‘ calor’

[‘sòli] ~ [‘sòl] ~ [‘sòu] ‘sol’



e outras semelhantes? Isto representa uma luta, um conflito dentro do sistema, em direção a uma uniformidade, isto é, para o restabelecimento do padrão silábico universal CV. E a presença de palavras contendo esquemas como CCV, parincipalmente se C2 não fôr uma das chamadas líquidas, se deve quase sempre ao influxo de comunidades de fora. Mesmo ocorrendo palavras como “mal” e “par’ e outras terminadas em /l/ e /r/, a preferência do sistema é pelo padrão CV. Acrescentando-se um /i/ após aqueles fonemas restabelece-se o padrão geral. O problema de [djivo’gadu] será tratado mais adiante.

Já havíamos visto que muito poucas palavras terminam em /õ/ ou em qualquer outra nasal. Este fato, mais a grande porcentagem de palavras terminadas em vocóide assilábico (ou semivogal), explicam palavras como [‘bãu~] ‘bom’.

Quanto aos grupos consonantais, eles ocorrem. Porém, nota-se que apresentam uma percentagem muito baixa. Das 366 sílabas estudadas, 6 tinham a estrutura C1C2V, uma tinha a estrutura C1C2VSV_2. Vamos aos exemplos.



Estruturas exemplos                      

CCV[‘briga], [‘braba], [bra’zilya]

[‘tri~ta], [bri~’kava], [kò’bRava]

CCVSC[‘treys], [‘kruys]

CCVS [la’drãu~]

Observando-se os dados acima, podemos notar um outro fato interessante: a segunda consoante do grupo consonantal é sempre /r/. Além do mais, os grupos consonantais ocorrem em maior número nas sílabas iniciais: dos 8 grupos acima, 6 ocorrem no início das palavras, contra 2 no meio. Este fato também é revelador.

É que os grupos consonantais tendem a ocorrer no início de palavras, consequentemente, em sílabas finais eles tendem a não ocorrer. De fato, não registrei nenhum grupo nestas condições, mesmo levando em consideração as centenas de palavras não incluídas naquelas de que pesquisei as 366 sílabas. As seguintes palavras justificam estas afirmações:



[‘otu] ‘outro’

[pedu] Pedro

[kwatu] quatro

[negu] negro e Nego (apelido)



Estas formas têm a justificá-las também o fato mais geral comentado acima, isto é, com esta formulação as sílabas estão dentro da tendência natural das sílabas do Português Capelinhense para o padrão CV. Em outras palavras, não se trata de uma deformação do “bem falar” apregoado pelos filólogos puristas, mas de uma tendência natural cientificamente comprovável.

Há um outro fato que merece atenção. Eu havia dito acima que as únicas consoantes que ocorrem em posição pós-vocálica eram /r/, /l/ e /s/. Examinemos as seguintes palavras:



[‘bebdu] ‘bêbedo’

[kõmdu] cômodo

[kilõmtru] quilômetro



De fato, elas desmentem aquela afirmação. Mas, em vez de comentar o fato aqui, prefiro postergá-lo para o item 4.5, quando falarei da acentuação tônica, isto é, da Prosódia Vocabular.














4.5. Prosódia



Agora examinaremos perfunctoriamente a Fonologia Supra-Segmental, isto é, a prosódia do Falar Capelinhense. Infelizmente, este tópico é um dos mais mal tratados em nossos compêndios tradicionais. Poder-se-ia mesmo dizer que em Português não existe nada satisfatório sobre o assunto. E é de se admirar, uma vez que a Prosódia representa a própria alma da língua e, de certa forma, é o elo entre Fonologia e Gramática (ou Sintagmática, mais especificamente). Os contruturalistas são os únicos que fizeram alguma coisa válida até hoje, pelo menos até onde pude investigar (Back & Mattos 1972). No entanto, não entraram em pormenores, dando apenas uns poucos exemplos. Se tivessem levado o princípio construtural até suas últimas conseqüências talvez nos tivessem apresentado algo de valioso para o estudo de nossa pobre Língua Portuguesa. Mas, vamos em frente.

A Fonologia Suprassegmental pode ser encarada de dois modos, ou melhor, em dois instantes: o da prosódia da frase (entoação) e o da prosódia do vocábulo (acentuação tônica). Aceitando a teoria dos construturalistas, vejamos o que podemos notar na linguagem de Capelinha do Chumbo.

Segundo os referidos autores, há em Português quatro tons:

tom 1 à gravíssimo

tom 2 à grave

tom 3 à médio

tom 4 à agudo



Exemplos:

1. “- O senhor3 quer comer4?” - período optativo (PO)

2. “- Co4mo se cha3ma?” - período interrogativo (PI)

3. “- Dei3xa mais bara4to!” - período jussivo (PJ)

4. “- E3la passava o dia inteiro comi1go” - período assertivo (PA)



Em 1, o elemento constante, isto é, distintivo, é o tom final /4/ ascendente. Em 2, o elemento distintivo é o tom inicial /4/, com tom final descendente. Em 3, a constância é a intensidade /4/, com tom final descendente. Em 4, finalmente, ela é o tom final /l/ descendente.

Apliquemos esta notação a enunciados (“períodos” na terminologia construtural). A fim de não estender demais este tópico, veremos poucos exemplos, pois o que pretendo mostrar aparece em quase todos os enunciados.



5. “Agó’3 qui cê chegô4?” - PO

6. “E será3 qui é professora ai4nda?” - PO

7. “On4de qui ceis istuda3ro?” - PI

8. “O sinhor3 pricura lá com o Zé4!” - PJ

9. “Es ‘pareceu3 pur aí foi qu’ess’ povo de Nico Valeria1no” - PA

10. “Ih, larga iss..., sô!” - PJ (sic!).



Aqui há pelo menos dois fatos que merecem destaque. O primeiro é o fato de que a sílaba sobre que recai o tom /4/ de períodos optativos, como primeiro acima transcrito, apresenta um contorno bastante interessante: inicia-se por um tom ascendente e termina por um tom descendente, ou pelo menos semi-descendente, apesar de o contorno entonacional deste tipo de enunciado ser com “final ascendente”. O mesmo fenômeno se verifica na última sílaba marcada dos dois enunciados seguintes. Às vezes parece simplesmente um alongamento da vogal, em vez da “ascensão e descensão”. Creio que se poderia dizer que esta característica entonacional é típica da linguagem da região. Pelo menos não se verifica em cidades como São Paulo, por exemplo.

Os exemplos supra foram trazidos à baila porque são algo de típico e tudo que é típico contribui para a unidade do falar local, por oposição aos falares circunjacentes.

O PJ (período jussivo) e o PA (período assertivo) seguintes não apresentam nada de especificamente chamativo. Mas, o último enunciado é marcante. O autor da frase havia convidado a todos nós que estávamos conversando com ele para uma festinha na casa de um amigo seu. Então o meu “acompanhante” perguntou a ele se ficava bem convidar outras pessoas, ao que ele retrucou com o que tentei reproduzir acima (10): simplesmente emitiu uma entoação anasalada de qualquer coisa como o que tentei transcrever, um engrolado que para uma pessoa de fora e sem saber das circunstâncias em que o diálogo se deu seria incompreensível. No entanto, os membros da comunidade, dadas as experiências comuns, isto é, dado o fato da linguagem em situação, entenderam perfeitamente a mensagem que ele quis transmitir. Isto é, ele quis negar, dizendo, por exemplo, “Deixa isso pra lá sô!, “Não, não é verdade o que você está afirmando”, mas ao mesmo tempo sabia que a situação não é muito regular. Em síntese, ele queria negar e afirmar ao mesmo tempo, com um jogo estilístico-semântico só perceptível na entoação em que a frase foi proferida. As palavras não eram necessárias. Se as usasse, ele se implicaria demais: não as usando, ele afirmou e negou ao mesmo tempo.

Fatos como este são muito comuns no linguajar local. Por que ocorreu isto? Acontece que estando a linguagem sendo usada em seu contexto, em seu ambiente, praticamente não se precisa de palavras em determinadas circunstâncias, dado o grau de familiaridade, de unidade existente na realidade sociolinguística capelinhense. Todo mundo entendeu. Além do mais, aquele “enunciado entonacional” não é um fato isolado: frequentemente ocorrem outros semelhantes.



Observemos os enunciados abaixo:



11. “Ô morto, ô atirado....ô....., né?”

12. “Ele é......”

13. Não, iss’ é puxano a raç’, né? do pai del’, né?”



Aqui têm-se alguns fenômenos típicos da linguagem local. O primeiro enunciado está incompleto, pelo menos aparentemente. Ou, dito de outra maneira, pelo menos no nível dos elementos segmentais. Mas, na realidade ele não está. O que acontece é que tendo sido usado numa situação cultural bem marcada, a própria pausa, o próprio silêncio em determinadas circunstâncias é significante, isto é, é portadora de significado. As reticências que se seguem a “atirado” e a “ô” significam qualquer coisa como “matado por outros processos: faca, pau etc.”. Melhor seria dizer: as pausas que se seguem a “atirado” e a “ô, uma vez que reticências são realidades meramente gráficas, cuja função é representar realidades fônicas. O segundo enunciado é, a este respeito, mais interessante. O falante aparentemente interrompeu seu enunciado. No entanto, devido às mesmas circunstâncias referidas para o primeiro exemplo, o enunciado cumpriu sua função comunicativa no momento em que foi proferido. Alguém mencionou o nome de uma pessoa a ser convidada para uma festa. Mas, como esta pessoa não era muito simpática (além do mais, um parente seu estava presente), disse simplesmente “Ele é...” e todo mundo entendeu e, o que é mais importante, não se feriu susceptibilidades de parente. Já o terceiro enunciado talvez pertencesse mais à Sintagmática, pois se trata de relacionamento de palavras. Mas, como se pode ver, apesar de a ordem não ser a mais costumeira, o enunciado é aceitável. Por quê? Devido à entoação. De fato, não fosse ela, como ligaríamos “raç’” a “do pai dele”? Só a entoação patenteia o relacionamento entre os elementos. Infelizmente, no entanto, ela ainda não mereceu a atenção dos estudiosos.

Do dito acima conclui-se que o Falar Capelinhense é altamente redundante, como qualquer outro tipo de linguagem humana articulada oralmente. Isso apesar de ter afirmado na Sintagmática que ela a evita. Evita-se em um setor, mas faz uso dela em profusão em outro, a fim de evitar a perda da mensagem devido aos “ruídos” existentes em qualquer situação em que se use a linguagem. Assim sendo, até mesmo as pausas, as interrupções são significativas, mas tudo devido ao envolvimento mútuo entre linguagem e cultura.



Na Prosódia do vocábulo, isto é, na Acentuação Tônica, há uma série de fatos marcantes. Se percorrermos todos os textos típicos (com isso quero dizer: “menos os das pessoas instruídas, que já moraram fora etc.’), verificaremos a ausência absoluta de palavras proparoxítonas. Este fato é importantíssimo, pois ele explica vários “desvios”, vários “vícios” do Falar Capelinhense, do ponto de vista dos filólogos e gramáticos puristas. Com efeito, observemos as seguintes palavras:



[‘kòska] ‘cócegas’

[‘kòrgu] ‘córrego’

[‘muzga] ‘música’



O que explica esta divergência em relação ao Português Literário? A explicação é simples: é uma das soluções locais para evitar proparoxítonos.

E aqui podemos explicar a ocorrência daqueles grupos consonantais apresentados acima. De fato, aquelas sequências de consoantes, isto é, [mtr], [md] e [bd] vão de encontro aos padrões silábicos do Falar Capelinhense, mas, diante de duas tendências contrárias (ausência de proparoxítonos versus simplicidade de estruturas silábicas) prevaleceu a primeira. Em um texto de 115 palavras de mais de uma sílaba a distribuição [de tonicidade] foi a seguinte:



paroxítonos                 81

oxítonos                      33

proparoxítonos             1

total ..........................115



Mesmo assim, temos que levar em conta que a única palavra cuja aparência é proparoxítona é “épuca”, e sua realização foi mais [‘èpuka], isto é, quase [‘èpka], do que realmente [‘èpuka]. Outra observação que deve ser feita a fim de não se pensar que as oxítonas são em grande número é que em geral são as palavras terminadas em “-ão”, os infinitivos dos verbos, palavras de alta frequência em qualquer diálogo. Portanto, uma estatística que levasse em conta não os números de ocorrência em um texto, mas palavras diferentes, levaria a um resultado muito mais favorável às paroxítonas. Levando-se em conta que “épuca” realiza-se como [‘èpka], podemos afirmar que a ausência de proparoxítonos é absoluta. De qualquer maneira, há uma tendência a se desfazerem as sequências consonantais mencionadas acima da seguinte maneira:



[ki’lõmtru] tende a [ki’lõtru]

[‘kõmdu] tende a [‘kõndu]

[‘bebdu] tende a [‘bebu] (veja-se “bebum”)



Há uma outra tendência interessante no que respeita o número de sílabas das palavras. Ocorrências como



[‘cheytu] ‘sujeito’

[djivo’gadu] ‘advogado’



e mesmo os exemplos do item anterior representam uma relutância em usar palavras muito longas. Assim sendo, as mudanças do penúltimo exemplo têm duas explicações para sua existência como tais; as do último têm apenas uma.

Para as finalidades deste trabalho, creio que os melhores exemplos são os penúltimos ou, mais especificamente, a palavra [ki’lõmtru]: ela é um elemento estranho que está se insinuando na linguagem local e para tal sofre algumas podas a fim de se adaptar aos hábitos linguísticos do lugar. [A medida de distâncias tradicional é “légua”].

A estas alturas alguém poderia perguntar: “Por que alongar-se tanto na descrição fonológica?” De fato, agora faz-se necessária uma explicação. Essa longa descrição fonológica apresentada visa a mostrar o Falar Capelinhense em seus elementos constantes a fim de se salientar sua pureza, sua unidade, livre de toda e qualquer influência (por enquanto) de fora. As variações constatadas, no entanto, representam esta influência que começa a se insinuar, devido à presença da escola, aos meios de comunicação e às viagens que os habitantes do lugar já começam a fazer a outras terras. Por enquanto trata-se de variações que, como tais, não afetam o sistema linguístico local, mas ao que tudo incica atingi-lo-ão também em futuro não muito remoto.

O motivo para uma afirmação como a do último período é que o falar se encontra mais puro nas gerações mais velhas; nas novas, principalmente nas que frequentam as escolas, as referidas variações são muito mais frequentes. Por exemplo, vimos acima que [r] e [l] se alternam, em alguns casos, em posição pós-silábica. Mas, a alternância não é comum a todos os membros da comunidade. Deixando de lado algumas poucas pessoas mais letradas (por volta de uma meia dúzia) a ocorrência de [l] na referida posição só se dá em pessoas que frequentam a escola e, eo ipso, nas mais jovens. Mas, mesmo assim não é sempre e, como sabemos, estas pessoas não são as mais representativas dos habitantes da localidade. As pessoas mais idosas também podem usar [l] nestas condições, mas sempre numa atitude calculada, isto é, diante de pessoas estranhas e/ou cultas. Entre si usam [r]. Talvez mesmo os jovens quando falam uns com os outros deem preferência ao som [r]. A presença do [l] é, portanto, uma forma de prestígio, isto é, forânea, tida como “bem falar”, mas não pertence ao núcleo do sistema linguístico local. Seria uma unidade extra-sistemática, e estaria em super-diferenciação (over-differentiation) com outras do sistema, no dizer de Kenneth L. Pike (Pike 1971).

O mesmo argumento vale para o uso de [y] em vez de [lh], como em



[mu’yè] ‘ mulher’

[ku’yè] ‘colher’

[‘fiyu] ‘filho’



Já o uso de [x], [r] e [rr] pós-silábicos é um caso diferente. Se bem que haja uma tendência para o uso de [x] entre as pessoas mais jovens, de um modo geral ocorrem em variação livre, sem nenhum princípio condutor detectável em uma pesquisa não aprofundada como necessariamente deve ser esta. No futuro pretendo dedicar um estudo somente à fonologia capelinhense, quando então, quem sabe, será possível chegar-se a uma conclusão sobre fatos como este e sobre outros também (como a Prosódia, tão mal estudada mesmo no “Português Literário”).

Nos vocóides, ou mais propriamente, nas vogais há fenômenos semelhantes. Como já vimos, [e] e [è] bem como [o] e [ò] ocorrem em variação livre em posição pretônica. De qualquer forma, há uma tendência nítida a se pronunciar [è] e [ò] quando se assume uma atitude formal, o que nos autoriza a considerá-los as formas de prestígio (Head 1973). E assim, vários outros fenômenos poderiam ser trazidos à baila nesta linha de pensamento, como os padrões silábicos, os padrões acentuais etc. Nota-se sempre um sentimento de que “nóis fala tudo errado”, isto é, os “dotor” da cidade é que falam “certo”. Mas, apesar deste sentimento, a linguagem permance em sua pureza original, por enquanto.

O simples fato de a análise fonológica nos ter mostrado que aqueles fenômenos são “variações” já é, por si só, eloquente, já justifica por si a descrição, além de nos revelar a estrutura fonológica do Falar Capelinhense que é tão perfeita como a de qualquer outra língua, por mais sofisticada que seja a cultura de que é veículo. Além do mais, se são variações, não pertencem ao núcleo fundamental da estrutura linguística local, mas antes representam a pressão sociolinguística das comunidades circundantes imediatamente e mediatamente.



5. Conclusão



Depois de tudo que foi dito nas páginas precedentes, verificamos que em todos os aspectos em que podem ser divididos os estudos linguísticos encontramos relação com a cultura. De certa maneira, isto vem de encontro ao que Sapir disse em seu já mencionado “Língua e ambiente” (Sapir 1969), isto é, que na Morfologia, na Sintaxe dificilmente encontraríamos alguma influência do ambiente em que vivem os falantes de uma língua. No entanto, Sapir foi um pioneiro, a Sociolinguística ainda não havia se formado. Hoje, podemos afirmar, com segurança, que há muita relação entre qualquer um dos aspectos supra-mencionados e o ambiente cultural e/ou físico. Se não vejamos.

Na Morfologia salientei fatos como as formas “es veio” [sem flexão verbal], ao lado de “pusemo” [com flexão]. Concorrendo com elas vimos que há “viero” e “nóis pois”, respectivamente. Enfim, que as formas verbais apresentam alomorfia, mas um dos alomorfes só ocorre em determinadas circunstâncias. Ou seja, formas como “fizemo”, “nóis fizemo” e, em casos raríssimos, mesmo “nós fizemos”, são extra-sistemáticas, só são usadas em situações culturais nitidamente marcadas, isto é, quando na presença de estranhos, principalmente de pessoas “cultas”. Consequentemente, estas formas são culturalmente determinadas. Normalmente só se usa “eu vim” e, para todas as outras pessoas, “veio”. Só o pronome distingue se é primeira, segunda ou terceira pessoa, do singular ou do plural.

Até mesmo nos tempos verbais foi levantada uma hipótese sobre a determinação cultural, isto é, o fato de o passado ser um tempo marcado teria algo a ver com o apego à tradição, com o que se passou e o que não se passou e que constituem o substrato para a estrutura social local. Mas, como é uma hipótese, não se pode firmar nela para outras ilações sem que primeiro fique provada.

Na Lexicologia vimos que o grande número de apelidos, hipocorísticos, nomes “adulterados”, enfim, que a existência de um nome oficial (de registro) e outro real (o usado pelos membros da comunidade) também era um meio de a sociedade adaptar a tradição de nomes próprios imposta pelo diassistema aos seus próprios padrões. Também isto é uma forma de determinação cultural, de imbricação língua-sociedade, também isso contribui para a unidade sociolinguística da comunidade capelinhense.

Quanto à Fonologia, como já foi salientado em seu devido lugar, há muita coisa devida ao ambiente cultural. Haja vista o fato já mencionado da existência de alofones, ou mais especificamente, de variantes livres, em posição pretônica e posvocálica, caso de [x], [r] e [rr], ou então, o caso de [ò] e [o], também em posição pretônica. Salientaram-se também as alternâncias entre [r] e [l] em final de sílaba (principalmente interna) e que o normal é o uso do primeiro contóide, sendo que só se usa o segundo em situações mais formais, em atitudes postiças. Em resumo, todas as variantes existem por determinação cultural, por pressão externa ou interna. Poderia continuar enumerando uma longa série de casos semelhantes aos comentados nesta conclusão, os quais se referem ao que foi levantado no corpo do trabalho. No entanto, como frisei em vários instantes, meu levantamento é necessariamente incompleto; são necessárias pesquisas mais aprofundadas em setores específicos. O que tentei fazer é muito abrangente, portanto não pode ser exaustivo em casos especiais. Futuramente, como já disse, pretendo voltar à fonologia capelinhense.

Nenhuma comunidade está imune a influências de outras comunidades. Assim, vimos que algumas das variações existentes poderiam ser devidas a causas geográficas, ao fato de Capelinha do Chumbo ser uma zona de transição entre duas grandes regiões linguísticas. Entre elas foram lembradas [r], [rr] e [x], bem como [ò] e [o] em posição pretônica. Outras, no entanto se devem ao influxo dos meios de comunicação (no caso, o rádio) e ao grande número de pessoas do lugar que vão estudar fora (principalmente em Patos de Minas), trazendo uma “pronúncia mais correta”; foram lembradas também as viagens (raras) que os habitantes fazem a centros mais adiantados. As escolas, sendo um fator de nivelamento linguístico, também contribuem para uma modificação nos hábitos linguísticos. A existência de um grupo escolar há vários anos (mais ou menos 20 anos) e de um ginásio desde 1968 não pode ser ignorada como fator de “correção do falar errado local”, como diriam os filólogos e puristas.

Causas como as mencionadas no último parágrafo justificam a existência de várias formas “de prestígio”, bem como justificam o fato de que todo mundo tem um complexo de culpa no sentido de achar que todos falam “errado”, isto é, quem fala certo são os da cidade, os que “puxam os s e l”.

Por enquanto estas variações ainda são extra-sistemáticas, são sentidas como não pertencentes aos hábitos linguísticos locais. São formas marginais que os falantes usam só quando assumem uma atitude postiça. No entanto, com o impacto dos meios de comunicação, da escola, e outros, estas variações extra-sistemáticas tenderão a se insinuar até mesmo no sistema e, afinal, serem as únicas constantes. Se isso é um mal ou um bem não vem ao caso. O que vem ao caso é que não podemos deixar desaparecerem os falares regionais que ainda se mantêm puros, como o de Capelinha do Chumbo, em relação ao influxo externo (dos grandes centros e, através deles, das culturas estrangeiras).

A pureza referida acima não tem nenhuma conotação xenófoba. Como é do conhecimento de todos, os linguistas, os sociólogos e os antropólogos têm um grande pesar em deixar desaparecerem culturas sem ser estudadas. Hajam vistas as culturas indígenas brasileiras que estão se extinguindo e outras que se acham já extintas. Os falares regionais, que são expressão de uma comunidade una, coesa, merecem a mesma atenção.

Todos os elementos que o Falar Capelinhense tem de específico distinguem-no dos falares das outras regiões do Brasil e do diassistema. Se esses elementos são específicos, são um fator de unidade, contribuem para que a comunidade seja realmente um bloco uno, do ponto de vista sociolinguístico.










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